sábado, 29 de dezembro de 2012

POLÍTICA: uma entrevista elucidativa


Raquel Varela é a coordenadora de um estudo académico que calcula da forma mais exata possível a relação entre gastos sociais do Estado e os impostos pagos pelos assalariados. «Quem paga o Estado Social em Portugal?» é um livro que assume a posição clara de desmontar a chantagem política feita sobre os trabalhadores ao propagar a ideia de que andaram a viver acima das suas possibilidades.
No «i» de hoje, ela deu uma entrevista a Nuno Ramos de Almeida em que diz coisas essenciais sobre o presente estado das coisas. O que se segue é uma colagem de várias passagens dessa entrevista de forma a dar-lhe alguma homogeneidade e ajudar a divulgar o mais possível as conclusões fundamentadas desta historiadora. Nada que se confunda com as serôdias teses do josé hermano saraiva dos nossos dias - rui ramos - por muito que seja este quem mais aparece promovido nos nossos ecrãs televisivos.

Nós provamos que de acordo com os números existentes os trabalhadores pagam com os seus impostos os gastos sociais do Estado. A outra questão é a razão por que chegámos aqui. Aquilo que aconteceu foi uma permanente transferência de recursos, desde o início do advento das políticas neoliberais em Portugal.
O neoliberalismo caracteriza-se pelo modelo just in time: não há stocks de mercadorias nem de força de trabalho. A força de trabalho tem de ser precária e estar permanentemente móvel. O neoliberalismo surge como reação à crise de 1981-84, que foi uma das maiores crises cíclicas do capital, que teve efeitos explosivos. Em Portugal assiste-se ao esforço para diminuir os stocks da força de trabalho. Desenrolam-se um conjunto de processos negociais em que parte crescente da força de trabalho mais velha é enviada para a reforma antecipada, o que vai ter um peso enorme sobre a Segurança Social. Estas reformas antecipadas são na realidade despedimentos encapotados em que as empresas não pagam a indemnização e endossam esse custo à Segurança Social.
A utilização da Segurança Social como uma espécie de fundo de despedimento das empresas privadas representa um grande rombo para esta. Parte significativa da força de trabalho mais velha e com mais direitos é empurrada para a reforma, sendo substituída por um contingente de trabalhadores subcontratados e sem direitos.
Durante 30 anos assistimos ao desenrolar deste processo, aquilo que muda em 2008, a maior crise desde 1981-84, é que a solução que os governos escolheram para sair desta crise passa pela transformação de todos assalariados em força de trabalho precária. Uma política que defende que as exportações só podem tornar-se competitivas com a queda abrupta dos salários, o que tem como consequência a quebra da procura interna. Esta política aumenta a conflitualidade entre os próprios capitalistas e nos partidos no poder: quando se aumentam as exportações, a Portucel ganha, mas o Belmiro de Azevedo e o Continente perdem.
Nós mostramos, por exemplo, que desde que existem os hospitais empresas, que são hospitais públicos com gestão privada, se verifica que a diminuição dos salários de médicos e enfermeiros é idêntica àquilo que é gasto na subcontratação externa de serviços a privados. Outra coisa que pomos em dúvida são determinados programas que estão contabilizados como gastos sociais mas que são subsídios diretos às empresas privadas, como por exemplo o Estado pagar parte do ordenado de trabalhadores que estavam desempregados que são contratados por empresas privadas.
Neste momento a Segurança Social não é deficitária, mas se me perguntar se uma sociedade aguenta ter mais de um milhão e quatrocentos mil desempregados por muito tempo, tenho muitas dúvidas. E não se trata só do equilíbrio financeiro da Segurança Social. Portugal com este nível de desemprego não é sustentável do ponto vista económico, social e político.
Chegamos a um nível de desenvolvimento da humanidade em que o problema do emprego tem de ser equacionado de outra forma: andamos na autoestrada e pagamos as portagens numa máquina, o mesmo fazemos em relação às compras no supermercado, o metro de Turim anda sem condutor... Chegamos a um nível de desenvolvimento tecnológico que naturalmente acarreta um patamar de desemprego estrutural se nós não mudarmos a nossa forma de viver. Temos de criar uma sociedade em que toda a gente trabalhe menos horas, mas que trabalhe. Se a única coisa que fazemos é formar engenheiros para construírem máquinas que vão substituir o trabalho de milhares de pessoas estamos a cair num buraco negro em que temos máquinas de um lado e desempregados do outro. Em nenhum sítio é possível aguentar a Segurança Social e a sociedade nestas condições.
Acerca da dívida, aquilo que concluímos é que, se os trabalhadores pagam tendencialmente mais do que recebem em serviços sociais, temos de ir procurar outras razões para explicar a acumulação do défice. Para isso damos um conjunto de pistas: as parcerias público-privadas, o crescimento dos encargos financeiros da própria dívida pública...
Se nós tivemos de nos endividar nos últimos 20 anos para compra de habitação isso não significa que tenhamos vivido acima das nossas possibilidades, mas abaixo delas. Os salários portugueses mantiveram-se tão baixos nos últimos 20 anos que as pessoas para resolverem este direito básico que é a habitação tiveram de se endividar. O neoliberalismo nem o direito básico da habitação conseguiu resolver. Das duas uma: ou nós insistimos que as pessoas são umas perdulárias que quiseram ter casa própria – mais de 70% dos portugueses são proprietários de casa própria para a qual a grande maioria teve de se endividar aos bancos – ou podemos dizer que os portugueses têm salários tão baixos que tiveram de se endividar para conseguir comprar casa.
O mais importante está no endividamento dos particulares para garantir os lucros do sistema financeiro e das grandes construtoras nacionais, cujo processo de acumulação de capital resultou desse endividamento forçado das famílias para resolver o direito básico de ter uma habitação. Esse processo não resolveu o problema das famílias portuguesas, que todos os dias, com o aumento do desemprego, arriscam ser despejadas. Temos de assumir que não andamos a viver acima das nossas possibilidades, mas pelo contrário vivemos num sistema económico que nem o problema da habitação consegue resolver.
Dizer que um país vive acima das suas possibilidades não é correto do ponto de vista histórico. Num país há pessoas que vivem acima das suas possibilidades e outras que não. A mim parece-me que é claramente o caso europeu. Por exemplo, culpabilizar todos os alemães é uma deriva nacionalista. Os trabalhadores alemães têm os seus salários congelados nos últimos dez, 15 anos por causa deste processo. Do meu ponto de vista, não devemos fazer esta afirmação em relação aos países no seu todo, mas em relação às classes sociais.
Portugal é o segundo país mais desigual da Europa, depois do Reino Unido, e esta crise é acompanhada pelo um aumento exponencial do consumo de bens de luxo, mas não se pode daí concluir que todos os portugueses estejam implicados nisso. Nós não temos um consumo excessivo, temos é um consumo exagerado de hidratos de carbono, temos um consumo deficitário de legumes frescos com nutrientes, temos um consumo exagerado de transportes individuais e um consumo deficitário de transportes coletivos. Ou seja, o problema do consumo não é abstrato, concretiza-se numa sociedade que é desigual. Há sectores que consomem muito e outros muito pouco e há coisas que se consome muito e outras muito pouco. Tem de haver uma elação saudável do homem, da economia e da natureza, mas não pode haver a ideia de um regresso a um passado mítico em que estaríamos em harmonia com a natureza.
A sustentabilidade deve ter por base uma análise criteriosa daquilo que consumimos a mais e daquilo que consumimos a menos. Nós consumimos muitas coisas a menos. Consumimos a menos alimentos biológicos, cultura de qualidade, transportes públicos, bicicletas não poluentes. Podia estar a tarde toda a dar exemplos. Mais que uma crítica do consumismo em abstrato temos de nos centrar numa análise daquilo que devemos e podemos consumir em concreto.
O processo de globalização que vivemos é um processo de globalização imperialista. É óbvio que esta globalização nos trouxe coisa de que nós gostamos: conhecer os outros povos, a sua cultura, a sua comida, consumir os seus produtos, etc. Isto tem sido feito através de um processo muito desigual e que vai produzindo desigualdades. Ao mesmo tempo que aos trabalhadores chineses é entregue uma guia para trabalhar 16 horas por dia por dois dólares, sem que se lhes permita levar a família e sem assistência social – estou a citar números oficiais usados por um historiador chinês –, temos um dos maiores processos de acumulação de capital nos Estados Unidos devido a esta divisão de trabalho que torna a China a fábrica do mundo. Esta desigualdade não é aceitável. Estou convencida que um dos grande objetivos do programa da troika é aproximar-nos da China. O capitalismo chinês tem um problema imenso que deriva de viver da exploração da mais-valia absoluta, o que significa que um trabalhador chinês dá mais--valia devido ao aumento da exploração do trabalho. Para isso é necessário manter o elevado número de horas da jornada de trabalho. Enquanto um trabalhador americano rende pela mais-valia relativa. Ele trabalha meia hora para si e as outras sete horas e meia são para o capital, enquanto um trabalhador chinês é muito menos produtivo. Para acumular o mesmo capital na China é preciso muito mais trabalhadores. A jornada de trabalho é maior por causa disso. Com um aumento de salário na China de 10% deixa de compensar as empresas estrangeiras estarem lá. Esse aumento de salário tem um efeito muito maior na diminuição da acumulação de capital que um mesmo aumento num país com uma grande produtividade. Nos últimos anos tem havido aumentos salariais na China fruto das greves. É possível que a burguesia europeia pense que a forma de resolver esta crise é tentar fazer uma China aqui perto, contornando os problemas que têm tido no processo de acumulação chinês.
Quando a chanceler Angela Merkel falou na hipótese de reindustrializar Portugal era isso que estava a propor. Por um lado, a utilização dos países do Sul da Europa como uma espécie de nova China, por outro o roubo de cérebros e licenciados para os países do centro da Europa e a Alemanha.
Nós temos hoje um milhão e trezentos mil licenciados em Portugal, e a mão- -de-obra na Europa é altamente qualificada. É tão proletarizada como era nas fábricas. Neste momento um investigador em Portugal ganha muito menos que um operário alemão. É um novo proletariado qualificado. É mais produtivo que o tradicional. O que eu faço hoje com um computador exigia há poucos anos dezenas de pessoas. Todo o processo de Bolonha visou criar as condições para a deslocação na Europa desta nova mão-de-obra extraordinariamente produtiva. Cada vez mais a língua é o inglês, há cada vez mais empresas que não trabalham na sua língua nacional. Estão-se a criar condições para ter um mercado de trabalho à escala continental. É por isso que a nossa precarização vai ser o enterro dos direitos sociais dos trabalhadores alemães. O que se prepara é que de hoje para amanhã os trabalhadores qualificados do Sul ocupem por um salário muito mais baixo o lugar de um trabalhador alemão. É este o objetivo da política da troika.




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