terça-feira, 31 de maio de 2022

As ilusões disseminadas pela Besta a abater

 

Uma das fraudes ideológicas mais em voga é a de caracterizar o nosso tempo como o do confronto entre as «democracias liberais» e os totalitarismos, muito embora nestes últimos os que falsamente aparentam ter algo de esquerda (Rússia, China), sejam vistos como inimigos mais odiosos do que são os claramente fascistas (Hungria, Polónia, Arábia Saudita) ou colonialistas (Israel).

No caldeirão liberal cabem os governos mais próximos da social-democracia (Portugal, Espanha), mas são claramente incensados os que não enganam pela ideologia assumidamente de direita (EUA, Inglaterra, França). No fundo procura-se escamotear o essencial: nesta fase crepuscular do capitalismo em que o abismo entre os muito ricos e todos os demais se vai alargando, a imprensa, a mando dos primeiros, vai fazendo os possíveis por evitar aquilo que a História demonstra inevitável: um confronto de classes, que derrube quem vive da especulação bolsista e imobiliária, dos monopólios da informação digital e da exploração das fontes poluentes de energia, e devolva à sociedade os valores da distribuição mais justa das riquezas sustentavelmente produzidas.

Quem procura eternizar um sistema económico, que há muito pressente o seu fim na História, precisa de arranjar inimigos mediáticos como Putin e criar falsos heróis como Zelanskii para que não os olhemos como aquilo que são: duas faces da mesma moeda em que ambos representam o conúbio com oligarcas e militantes neonazis e coincidem nas tentações de privação das liberdades fundamentais dos seus adversários políticos. Por isso primam pela proibição ou cerceamento dos partidos e movimentos políticos oposicionistas (45% dos deputados ucranianos viram os seus partidos ilegalizados) e das liberdades de expressão de pensamento ou de imprensa (e se Putin os silencia sem escrúpulo, Zelenskii demonstra bem a índole quando, anteontem, verberou os canais franceses, que decidiram também cobrir a guerra do lado russo). Para não falar da inaceitável proibição de canais russos pela União Europeia numa decisão absolutamente contrária aos princípios, que a dizem nortear.

Na propagandeada luta entre «democracias liberais» e totalitarismos vamos sendo iludidos quanto ao essencial e é aquilo que continua a fazer todo o sentido: existe globalmente uma guerra ideológica entre as esquerdas e as direitas, as primeiras procurando aproximar as sociedades humanas dos valores da liberdade, da fraternidade e da igualdade, defendidos pela Revolução Francesa e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, as segundas tudo fazendo para que as coisas continuem a ser como são, ou seja uns mandando e abocanhando a maior parcela das riquezas e os outros indignando-se, conformando-se ou servindo de idiotas úteis ao serviço daqueles que deveriam enfrentar como seus inimigos de classe.

E esse é o verdadeiro drama que hoje se vive na Ucrânia com tão graves consequências para quem nela morre, é ferido ou empobrece: dois regimes de direita fazem o que a História demonstrou residir na sua natureza belicosa, o mais forte invadindo o que se adivinha mais frágil, mas ao lado do qual se perfilam interesses a ele associados, enquanto as injustiças se agudizam (vide o Relatório da Oxfam sobre como os ricos se têm tornado ainda obscenamente mais ricos nestes últimos dois anos) e a própria civilização humana vai jubilosamente avançando para o apocalipse climático apenas porque os tais interesses capitalistas que o promovem preferem a destruição global ao seu aconselhável e definitivo desiderato.

Na Ucrânia, como em todas as latitudes, é o capitalismo que figura como a verdadeira besta a abater! 

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Luis... quem?

 

1. Que coisa mais estapafúrdia foi o discurso de um tal Luís, agora a liderar o maior dos partidos de direita de oposição ao governo.

É certo que daquela cabeça nunca se vislumbrou ideia minimamente consistente resumindo-se as suas pretéritas intervenções parlamentares a meros exercícios de retórica próprias de um cinzento advogado de barra de tribunal. Na altura a troika punha, o governo dispunha e o referido Luís servia-lhe tão só de câmara de eco.

Que os tempos não lhe trouxeram novos atributos pensantes demonstrou-o agora quando nem sequer quis ouvir falar da hipótese de um debate direto com o rival e ao deixar implícita a vontade de juntar trapinhos com o Chega como forma de arredar do poder os atuais ocupantes. Que neles tenha visto «socialismo» é coisa que nem os mais decanos militantes do mesmo (o meu caso!) conseguem divisar naquilo que é uma política ao centro, nem enfeudada de mais aos aspirantes a novos donos disto tudo, nem totalmente contrária aos que a eles precária e mal remuneradamente se submetem.

Que nem os militantes laranjas com quotas pagas se interessaram pelo assunto demonstra-o os 40%, que nem sequer se deram ao trabalho de botar o votinho num dos dois candidatos. O que pressupõe quão efémera será esta chamada à frente de cena num espetáculo político para que o sabemos pouco talhado.

2. Crescimento do PIB em 11,9% no primeiro trimestre do ano, com subidas notórias nas importações (27,4%) e nas exportações (16%), depois de excluídos os combustíveis. Eis números, que animam justificadamente quem apoia este governo. Embora o aumento do défice na balança comercial alerte para a impossibilidade de a manter tão desequilibrada quanto agora se revela.

3. Numa altura em que a Rússia está a somar ganhos militares e territoriais no leste da Ucrânia, Jorge Almeida Fernandes chama a atenção para as palavras confiadas por Andrey Kortunov ao The Economist: “O Ocidente tem falta de recursos materiais e políticos para forçar uma derrota esmagadora de Moscovo na Ucrânia e impor a sua variante de acordo de paz. O que está em jogo para a Rússia é muito mais do que para o Ocidente e a sua disposição para a escalada é maior do que a dos seus adversários”. Daí que todas as previsões relativas a uma inevitável derrota de Putin tenha muito de wishful thinking sem correspondência com quanto se passa na realidade.

4. Nesta altura os palestinianos lamentarão não usufruírem de tanta simpatia quanto os ucranianos. Rachid Khalid, que é professor na Universidade de Columbia, lembra que subsiste em Israel uma forma de apartheid em que a lei é aplicada com toda a veemência quando a vítima é judia, mas fica ignorada, quando é esta última a agressora.  Para a Europa tão lesta a sancionar os russos, nenhuma hipótese há de ser Telavive a pagar as custas daquilo que ele qualifica de “colonialismo de povoamento”.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Irrelevâncias caseiras, mas pertinências globais

 

1. Estamos no fim-de-semana do congresso do PSD e confirma-se aquilo sobre que Manuel Carvalho, diretor do «Público», se carpia um destes dias: ninguém anda a ligar se será Montenegro ou Moreira da Silva quem figurará como principal líder de oposição ao governo de António Costa. O entusiasmo é tanto, que o assunto é remetido para as páginas interiores dos jornais e para meio dos telejornais.

Na deriva para a (definitiva?) irrelevância, que nem sequer se ilude com o nevoeiro capaz de trazer de volta o sebastião de Massamá, o partido laranja não consegue esconder a defeção de militantes e de quadros de “qualidade”, condenando-se a uma mediocridade cinzenta, que torna merecedora a desatenção a que é sujeito.

2. Para quem teime em olhar para a economia mundial com outros filtros, que não os da análise marxista, será difícil justificar a realidade agora denunciada pelo relatório da Oxfam: em vinte e quatro meses de pandemia as maiores fortunas cresceram mais do que nos vinte e três anos anteriores. Em cada trinta horas surgiu um novo milionário, quase ao mesmo tempo que um milhão de pessoas caía na pobreza extrema. Assim se chega ao absurdo de somar o PIB dos 46 países da África subsariana para equivaler à fortuna dos vinte mais ricos do mundo. O mais sinistro de entre eles, Elon Musk, poderia perder 99% da fortuna e ainda assim continuar a integrar a lista dos 0,0001% mais ricos do mundo.

Se isto não justifica uma Revolução, que corrija tão desigual distribuição de rendimentos, não se encontrará razão maior.

3. À medida que as derrotas e perdas de vidas de militares ucranianos se vão acentuando, as notícias sobre a guerra perdem o foco mediático e parece voltar a vontade de Zelanskii em negociar. Até por ter quem, como Henry Kissinger, apele a alguma sensatez no trato com os russos, e porque o vazadouro de dinheiro e de armamento oriundo dos aliados ocidentais vai começando a pesar no entusiasmo por uma guerra, que tarda em dar-lhes o retorno prometido por um presidente norte-americano apostado em acumular gaffes, depois corrigidas pelo próprio ou pelos mais diretos colaboradores. A da guerra com a demonstrativa de como Biden pede meças a Putin sobre qual dos dois será o maior falcão. Porque a guerra da Ucrânia é a da Rússia e dos Estados Unidos num ajuste de contas herdado da guerra fria resultando o martírio dos que para ela não pregaram prego nem estopa, mas lhe pagam todos os custos, em vidas e outras formas de sofrimento.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Cereal Killers

 

Que a guerra terá um efeito em cadeia de imprevisíveis dimensões estão-no a constatar os países ocidentais, que foram lestos em cortar os canais diplomáticos com a Rússia - com a assinalável exceção de Emmanuel Macron - e em estabelecerem sucessivos pacotes de sanções de escassos resultados para quanto pretendiam, e agora olham para a escassez alimentar a nível mundial causada pela retenção de cereais nos silos ucranianos sem outra solução, que não seja a de apelar à boa vontade de ... Vladimir Putin.

Entre diaboliza-lo por acrescentar mais sofrimento ao do povo ucraniano ou equacionar até que ponto têm tido sucesso na continuada estratégia de amesquinhamento da Rússia, haverá quem comece a duvidar do acrítico seguidismo do que tem sido ditado a partir do Pentágono. E pior será quando, do Líbano à Somália, as imagens de gente a morrer de fome suscitarem empatia tão intensa quanto a que, por ora, parece cingir-se à manifestada para com os ucranianos.

Por certo Moscovo não prescindirá de mais um dos fortes argumentos de que disporá para enfatizar a narrativa com que justifica a invasão do território por si qualificado desde o tempo dos czares como sendo a «pequena Rússia». 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Erros de casting

 

1. Terá existido na notícia dada por Marcelo aos jornalistas o requinte de malvadez que, em tempos, o levou a fazer de Paulo Portas a sua vítima por interposta revelação sobre uma vichyssoise? Desejaria, intimamente, que a visita de António Costa a Kiev coincidisse com um ataque russo parecido com o vivido pelo Presidente do Conselho Europeu Charles Michel em Odessa e porventura mais certeiro? Teríamos assim a demonstração de um Marcelo inconformado com a coabitação dos socialistas no poder executivo e legislativo, e encontrando num desejo utópico a hipótese de ainda acabar o mandato com um apaniguado seu em São Bento!

Ou, pelo contrário, já estamos perante a constatação dele replicar Balsemão, quando em tempos o deu como «lélé da cuca»? Aos 78 anos Marcelo pode estar a envelhecer mal e a não iludir a sua acelerada perda de capacidades para o exercício do cargo. É que a ninguém lembra, e muito menos aos socialistas, que uma notícia a ser objeto de recato, até surgir o momento propício para a tornar pública, o fosse antecipadamente.

Como acontece desde o primeiro dia em Belém Marcelo continua a ser um inexplicável erro de casting.

2. Como o terá sido o assassino de Buffalo, que matou umas quantas pessoas em nome de uma supremacia branca, que vê em risco de se perder nos Estados Unidos e no mundo em geral. Idiota psicopata ei-lo vítima do tipo de discurso propagandeado por gente como Tucker Carlson, um dos mais principais rostos da Fox News, e que não se cansa de prometer cenários apocalípticos para quando forem os outros, os de outra cor, credo ou ideologia, a tomar conta do american way of life. Que se sabe tratar-se de uma inconcebível mistificação, porque nada tem - para a grande maioria que o vive - com o prometido sonho da futura e eterna felicidade.

3. Vadim Shishimarin é o rosto do dia ao sujeitar-se a julgamento por alegado crime cometido na aldeia de Chupakhivka na Ucrânia. Numa guerra em que somos torpedeados com a propaganda de um dos lados e proibidos de aceder à do outro - estranha forma de demonstração da «democracia europeia» - esse rapaz de 21 anos é a vítima de uma situação que, em muito extravasa, o seu entendimento. Sabemos do que o acusam, mas que garantias existem de que terá julgamento mais justo que os dos neonazis do batalhão Azov, que se renderam em Mariupol?

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Cegos, surdos, mudos

 

1. Cegos, surdos e mudos anda muita gente, que continua a analisar os acontecimentos internos e externos de acordo com uma grelha, que apenas leva em conta os secretos desejos e esquece o que os possam pôr em causa.

2. Por exemplo a próxima liderança do PSD que está disposta, mais ou menos acobertada pela hipocrisia do indisfarçável calculismo, a chegar ao poder com a bengala do Chega. Luís Montenegro não conseguiu disfarçar esse projetado conluio e Jorge Moreira da Silva denuncia-o com a escolha da bastonária dos enfermeiros para sua mandatária nacional, quando a sabe próxima de André Ventura.

Na crónica do «Público», Carmo Afonso conclui que se “nas últimas eleições os portugueses mostraram que não aceitam ter um governo viabilizado por um partido com as características do Chega” só pode constatar-se que, no principal partido da direita, “alguém está surdo”.

3. Afinal a corrida desenfreada do ocidente para uma vitória total contra a Rússia começa a encontrar inesperados obstáculos e, muito curiosamente, graças a ditaduras com que tem pactuado nos anos recentes nunca tomando contra eles as medidas, que lhe estariam ao alcance para dificultar os sucessos enviesadamente eleitorais, que têm multiplicado. De facto, quer a Turquia de Erdogan, com a obstrução à entrada da Suécia e da Finlândia na NATO, quer a Hungria com a desaprovação do sexto pacote de sanções contra Moscovo, demonstram a perversidade das contradições europeias quanto à forma como encaram diversamente as ditaduras de acordo com os seus interesses imediatos e não os de médio e longo prazo.

4. A assumpção da derrota ucraniana em Mariupol traduziu-se na rendição dos militares no complexo Azovstal e no seu envio para a retaguarda da frente russa. Não houve, pois, resgate à chucknorris como alguns pretendiam, nem a garantia que a acusação de neonazis não os faça incorrer em penas pesadas senão mesmo capitais. O entusiasmo de alguns pelo heroísmo do batalhão Azov deve ter arrefecido momentaneamente: isto de ir à guerra implica o inevitável dar e levar.

5. Nove milhões de pessoas morreram em 2019 por causas atribuídas à poluição, segundo um estudo da revista The Lancet Planetary Health.

Feito um parêntesis às causas ecologistas por obra e graça da pandemia e da guerra na Ucrânia, só podemos concluir que a sua urgência apenas se agrava.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Fanáticos são só os outros?

 

No essencial estou plenamente de acordo com o que Carmo Afonso tem escrito na última página do «Público», mormente em relação à guerra na Ucrânia. Nomeadamente em relação ao que possa ser defendido ou contrariado por quem se posicione politicamente à esquerda e sabe que, quer Putin, quer Zelenskii, representam fações distintas de uma mesma direita, ambas de duvidosas credenciais democráticas - algo que não é necessário demonstrar em relação a quem manda no Kremlin, mas convém lembrar para quem, em Kiev, ilegalizou quem, no Parlamento, representava 44% do eleitorado do seu país. Por isso concordo quando a colunista escreve: “Não existe nenhum reduto de esquerda nesta guerra e não é costume que isto aconteça. É natural então que a esquerda esperneie tanto à procura de uma posição onde se sinta confortável. Essa posição não será encontrada. A esquerda não pode ambicionar encontrar uma posição que combine com aquilo que não existe: um lado nesta guerra com o qual se possa identificar politicamente.”

Daí que reste à esquerda “condenar a invasão, como se condenam os crimes violentos, mas não pode aderir à narrativa da luta pelos nossos valores ou da luta pela democracia. Não é na Ucrânia que os valores que a esquerda defende estão a ser defendidos ou atacados: eles são, ali, um não assunto.”

Não falta, porém, quem quer conciliar valores “democráticos”, e até “socialistas”, com a narrativa abundantemente propagandeada por um dos lados do conflito, silenciando, deturpando ou relativizando o que provém do outro lado. Faz por isso todo o sentido o que Vitor Belanciano escrevia ontem no mesmo jornal e se ajusta, como uma luva, aos que ouvem os telejornais dentro do seu pensamento mágico: “A maioria das pessoas só ouve o que quer ouvir. Procuram o reforço, não a dúvida. Fecha-se a porta à discrepância, ao saber mais, à omnipresença do heterogéneo que faz da vida algo com ambiguidades, nuances e arestas. Sem questionamento e disponibilidade para escutar outros motivos, os nossos argumentos tornam-se crenças, lugares-comuns, preconceitos ou dogmas. Prestamos atenção e atribuímos credibilidade ao que nos credita. Evitamos o que nos ponha em causa.”

Muito embora olhem os islamitas e outros radicais como um bando de fanáticos incapazes de olharem para um lado da realidade e para o seu reverso, mostram-se incapazes de compreender quanto da mesma cegueira facciosa  subsiste dentro de si...

It’s the capitalism, stupid!

 

Nem pelo facto de ter batido com os burrinhos na água quando aderiu, sem reservas, à tese de Francis Fukuyama sobre o fim da História (que o próprio acabou por renegar!), ou das muitas vezes em que anunciaram a definitiva rendição do quintal das traseiras dos norte-americanos - a América Latina! - aos seus interesses, as direitas são incapazes de olharem para a realidade política com a devida honestidade e lucidez. Por isso louvam o adiamento da morte anunciada da NATO como se tivessem ganho o jackpot no Euromilhões, enquanto não perdem uma única oportunidade para humilharem aquele que é, e continuará a ser, o maior país do planeta e donde muitos dos recursos naturais, que não podemos dispensar para mantermos o conforto ocidental, continuarão a ser imprescindivelmente importados.

Putin pode, e deve, ser afastado, mas a humilhação por que passa a nação russa perdurará nas décadas vindouras e não se anuncia benfazeja para quem a tem por vizinha. Até porque quem com ela mais lucra - o imperialismo norte-americano - nunca tem sido particularmente generoso para com os que se mostram tão subservientes aliados.

Porque há mais marés que marinheiros, há que temer os efeitos da que se seguirá e nos poderá arrastar para consequências, que nos levarão a analisar este momento histórico e repetir aquilo que outros, no passado, também concluíram: quantas ilusões desfeitas à conta da humilhação de um império para que outro, não menos decadente, se mantenha à tona mais algum tempo. E, no entretanto, os mais atlantistas como Teresa de Sousa, no «Público», revela-se assustada com a possibilidade de sucesso da Gerigonça francesa contra as ambições do político de direita, que acaba de ser reeleito para o Eliseu. Lamentando que a velha guarda do Partido Socialista tenha perdido a pugna interna perante os militantes mais jovens, que se reconhecem na urgência de ressurgir a esquerda a partir da união de todas as suas correntes de expressão. De facto, entre os políticos convencionais e a juventude apostada na defesa dos velhos princípios, mas com novas roupagens e estratégias, o futuro aponta para algo muito diferente daquilo que atualmente existe e constitui a ilusória estabilidade pretendida pelos que apenas querem o impossível: dar algum alento a um sistema económico que está a romper pelas costuras... 

domingo, 15 de maio de 2022

Cenas de lutas de classes nos Estados Unidos

 

Vladimir Vazak é, de entre os repórteres do canal ARTE, o autor de alguns dos trabalhos mais interessantes nele emitidos como, recentemente, aconteceu com os que rodou nos Estados Unidos.

Em Brockwood, Alabama, foi ao encontro de mineiros em greve há dez meses, porque a empresa local não lhes repôs os salários de acordo com o que recebiam antes de uma momentânea crise, que os levara a aceitar um corte transitório. Agora, retomados os lucros significativos, os seus acionistas não quiseram discutir o regresso à situação anterior, que possibilitaria a melhoria efetiva na qualidade de vida dos seus trabalhadores.

Para muitos dos grevistas a descoberta do significado das lutas sociais - só conhecidas de longínquo passado e vividas por gerações anteriores - conjugou-se com outra novidade: a da solidariedade de e com trabalhadores ligados a outros setores, como os da Amazon ou da John Deere.

Vazak testemunhou-lhes a determinação e a consciência de classe, mas também as contradições: muitos confiaram-lhe a crença do regresso de Donald Trump à Casa Branca por o julgarem amigo dos trabalhadores, e todos, no fim de cada reunião sindical, partilharam uma oração debitada pelo pastor da igreja evangélica em que confiam.

A mil e quinhentos quilómetros a noroeste dali, fica Aspen, a cosmopolita estância de esqui do Colorado. Em tempos também fora cidade mineira, mas a partir dos anos 60 do século transato, começou a ser frequentada pelos mais endinheirados dos norte-americanos, que ali vêm dedicar-se aos desportos de inverno. Mas com um efeito problemático: o custo de vida, e mormente o da habitação, é proibitivo, o que impossibilita a fixação dos que trabalham para a comodidade dos praticantes dessas atividades de lazer. Daí que cresça o défice entre a oferta de emprego e a sua procura, agravado pelo abandono da região pelos que costumavam arcar com as tarefas de manutenção e limpeza dos hotéis ou das residências particulares.

Decidida a arranjar uma solução a câmara local propôs a construção de bairros de habitação social, mas a intenção foi liminarmente rejeitada pelos políticos locais, que representam os interesses desses ricos e desejariam ver-se satisfeitos nas necessidades, mas sem pagarem os custos para tal. Daí a sensação de se atingir um patamar de rutura, que os mais lúcidos identificam como iminente, mas não sabem como solucionar. Até por estender-se a outras cidades e setores onde esta realidade se replica.

No país do tio Sam as contradições entre ricos e pobres aumentam e, nalguns casos, não parecem distantes das imprevisíveis explosões sociais. Embora com características aparentemente diferentes das que costumavam constar das habituais análises marxistas, também elas a carecerem de urgente atualização. 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Nada inocentes inquietações com a espionagem em Portugal

 

A suposta espionagem na Câmara de Setúbal tem dado o mote a uma campanha russófoba e anticomunista, que nada tem de inocente, mas, convenhamos haver no presidente daquela autarquia uma inabilidade manifesta, quando pretende sacudir a responsabilidade para cima do governo. Que, por outro lado, vê-se obrigado a ensinar à oposição, como se no seu todo fosse muito burra, em particular Rui Rio, o que é ou não legal no respeitante aos assuntos relacionados com a segurança nacional.

E, no entanto, muitas questões poderiam ser levantadas a partir das que tiveram epicentro na embaixadora da Ucrânia, cujo protagonismo, enquanto arma das direitas para disparar contra as esquerdas, tem confirmado a sua falta de elegância e de diplomacia para exercer o cargo, que se pretenderia imune a suspeições quanto a preferências políticas pelo espectro partidário nacional.

Por exemplo:

 - será que todos os russos radicados em Portugal são pró-Putin ou muitos até são seus manifestos opositores (vide os que tanto pugnaram para que Medina perdesse a autarquia da capital e se congratularam com a vitória da aliança de direita personificada em Carlos Moedas!)?

 - será crime considerar que existe uma lógica argumentativa da Rússia, a ser levada em conta dada a forma como foi tratada desde a implosão da União Soviética, mesmo que se discorde da forma como se expressou a partir de 24 de fevereiro?

 - será que só os eventuais espiões russos são um problema para a segurança nacional ou os que os norte-americanos (entre outros) também aí têm - provavelmente em muito maior número! - também o são, sem que haja quem no Parlamento com eles se preocupe?

Manda a realidade reconhecer que, contrariando o patriotismo de que são capazes de encher a boca com essa palavra, todos quantos exigem informações dos serviços secretos - desde o tal autarca de Setúbal ao inquilino do Palácio de Belém - ignoram, ou fingem ignorar, que essa é uma área da segurança nacional, que tem de se cingir àquilo que consta da sua própria designação: secreta. Mesmo que - e o exemplo está a confirmar-se aqui ao lado em Espanha onde independentistas catalães estavam a ser alvo de ilegítima investigação! - deva ser devidamente investigada e controlada por quem, constitucionalmente, está mandatado para tal. 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Os nazismos na ordem do dia

 

Não deixa de ser curiosa a coincidência de se estar a publicar em França um volume inédito de Louis Ferdinand Céline  («Guerre») quando a questão nazi é uma das mais pertinentes na guerra ucraniana.

Em França reabilita-se um escritor assumidamente antissemita, que colaborou com os nazis durante a Ocupação, louvando-se-lhe a escrita singular, apreciada em função do seu estrito “valor literário”. Como se os conteúdos pouco importassem ou até merecessem elogio, porque o protagonista, jovem soldado hospitalizado, compraz-se com uma sucessão de fornicações bissexuais e maldiz os pais, que o visitam e de quem diz pior que Maomé do toucinho.

A leste é o que se sabe: Putin e Zelenskii acusam-se mutuamente de nazis com a imprensa ocidental a pôr-se do lado deste último, mesmo reconhecendo a ideologia neonazi da Brigada Azov ou a veracidade dos 42 assassinados em maio de 2014 na Casa dos Sindicatos em Odessa às mãos dos incendiários, que surgem agora como heróis patriotas de um país ocupado.

Por ora, e à exceção do comunicador-mor de Kiev e seus mais entusiastas apoiantes, ninguém consegue encontrar justificação para legitimar o conceito de genocídio, muito embora os invasores repitam os crimes conhecidos do Exército Vermelho em 1945, quando perpetraram fuzilamentos sumários e violações em massa contra os sobreviventes alemães. Mas como a História foi então reescrita pelos vencedores, poucos se importaram com esse ignóbil comportamento. Até se arranjou o pífio argumento dos soldados soviéticos expressarem nessas crueldades a raiva pelos vinte milhões de mortos, contados entre os seus familiares e amigos.

Agora, porque ainda ponderam na possibilidade de verem os  russos vencidos, os mesmos atos de há quase oitenta anos merecem leitura diferente por aqueles, que se arriscam a ter de moderá-la, acaso o resultado final saia diferente daquele que anseiam. Para já vão-se enganando em todas as conjeturas sobre o comportamento de Putin: ontem, no discurso do 9 de maio, ele não contemplou nenhuma das hipóteses dos que se tinham arriscado a prever-lhe o conteúdo. Daí que a imprevisibilidade se mantenha como hipótese no futuro próximo, quer quanto ao recurso global a armas nucleares, quer quanto ao risco  de a União Europeia imitar a Rússia numa crise económica suscitada pelas sanções, que lhe impôs e a embate em certo ricochete. Com os norte-americanos e os chineses a, de fora, contarem os lucros de um conflito, que só a eles beneficia...