terça-feira, 31 de março de 2020

Uns trabalham esforçadamente, outros apenas dizem mal


No dia em que a imprensa internacional, mormente a francesa, reconhece a capacidade do governo português em conter a crise de saúde pública numa dimensão, que outros Estados não conseguem, e em que começa a ação de testagem dos doentes dos lares de norte a sul do país para os acautelarem preventivamente da propagação do vírus, os suspeitos do costume encontraram outras táticas para porem em causa o bom trabalho executado.
Governo de Salvação Nacional, exigem uns, particularmente representados pela equipa de jornalistas da RTP, cujo subdiretor quase obrigou Rui Rio a associar-se à proposta de José Miguel Júdice proclamada na SIC nos dias anteriores. O presidente do PSD tentou chutar para canto, mas a seleção das suas palavras tornaram-no falaciosamente paladino dessa solução, ambicionada por alguns setores das direitas como forma de associar-se oportunisticamente ao que as sondagens aferem ser um apoio inquestionável dos portugueses à gestão da crise. Igualmente da televisão estatal vem o ataque insidioso e continuado à diretora-geral da Saúde, drª Graça Freitas, não só através das perguntas diariamente feitas pelos «jornalistas» destacados para a ocasião, como também pelo tom geral das notícias em que há até um pivot a querer dar-se ares de importância mandando calá-la. Se da TVI e da CMTV podemos esperar o que só pode explicar-se por quem manda nas suas direções de (des)informação, a televisão pública continua a ser altifalante apostado em criar ruído contra o governo.
Que Rui Moreira esteja na primeira linha do combate contra uma notável personalidade, que se tem revelado incansável no bem sucedido combate à crise, não causa surpresa: sem tanto folclore quanto o protagonizado por Alberto João Jardim na Madeira, o autarca do Porto não abdica de um populismo regionalista, que consegue iludir quem nele vota, porque mantém recalcados complexos de inferioridade em relação à capital, mas nenhum contributo positivo dá ao interesse nacional. Já menos se compreende que a ele se associem autarcas socialistas da área metropolitana do Porto, nomeadamente o de Gaia, que parece sempre eivado do despeito de em tempos ter sido derrotado no seu entusiástico apoio a António José Seguro, não perdendo a oportunidade para dar caneladas no governo sempre que o ensejo se lhe proporciona.
E há também a imprensa escrita. Deixei definitivamente de comprar o Expresso, quando passou a ter por diretor um fanático antissocialista, que prometia, e tanto quanto sei, cumpriu, uma deriva do jornal ainda mais para a direita. Mas ainda me chega o Expresso Curto, newsletter diária com o resumo do que se publica na versão paga. Hoje quem a assina é Elisabete Miranda, que impressiona quanto ao afã como seleciona da realidade tudo o que apresenta como negativo e nada equilibra com o reconhecimento do que de muito positivo se anda a implementar. Esta edição deveria servir de exemplo nas escolas de jornalismo quanto ao que corresponde a uma flagrante violação dos deveres deontológicos da classe quanto à objetividade e isenção do que publicam. Porque raramente deparamos com um texto aparentemente serio, que mascara uma tão grosseira intenção de criticar só pela vontade de depreciar quem muito anda a esforçar-se para que os portugueses vençam esta crise.

segunda-feira, 30 de março de 2020

KWY (Cá Vamos Indo)


Cá passámos outra semana num mundo que julgaríamos improvável conhecer. E sem fim à vista, porque os números continuam a impressionar pela dimensão: já se registaram mais de seiscentos mil infetados por todo o mundo, onde mais de um milhar de milhões de pessoas estão a cumprir diversos tipos de quarentena.
Dano colateral são as perguntas imbecis de muitos jornalistas e, provavelmente, nem tenho ouvido  as mais idiotas já que me escuso a ver a CMTV ou a TVI. Mas ainda há bocado assistia à entrevista a um especialista português, também a trabalhar nos EUA, que demonstrava uma sensatez e uma capacidade de comunicação invulgares perante um Rodrigo Pratas (na SIC Notícias) a brindá-lo com questões de tal quilate, que facilmente se adivinhava o esforço de contenção do interlocutor para manter um discurso inteligente e assertivo.
Outra das ideias feitas disseminadas por muitos desses comunicadores dos telejornais é a da superior capacidade da China para ultrapassar a crise do covid-19, atribuindo implicitamente à especificidade do regime de Pequim uma maior habilidade para corresponder às circunstâncias. Parece que por tais cabecinhas pensadoras não passou a hipótese de haver nos governos asiáticos um saber de experiência feito à conta do que vivenciaram em anteriores epidemias, mormente com a gripe aviária (H5N1) em 1997 ou com o SARS em 2003, que pouparam a grande maioria os europeus. Embora não faltassem alertas quanto à possibilidade de novas pandemias prevaleceu no Velho Continente o síndroma do Pedro e do Lobo, não havendo líder político, nem governo preparado para o que estamos a enfrentar. Por isso em nenhum país existe a capacidade de fazer tantos testes quanto pretendem os tais comunicadores televisivos ou os entrevistados a que instam para que concordem com a sua prévia insinuação de subsistir tal «falha» na resposta à crise. Só gente mal intencionada pode afirmá-lo, porque dependendo a produção mundial de máscaras, ventiladores e outros itens fundamentais do equilíbrio entre a oferta e a procura os fabricantes tardam em reequilibrar a súbita assimetria causada rápida propagação do vírus.
O que não tem escapado à grande maioria dos portugueses é a súbita conversão dos mais furiosos liberais à intervenção pública. Aqueles que tanto defenderam a privatização da saúde aparecem agora como paladinos do SNS. Falta-lhes a vergonha de se penitenciarem por quanto contribuíram para enfraquecer um bastião, que os cidadãos quererão ver ainda mais valorizado, quando este transe for ultrapassado. Porque se pensarem no que sucederia acaso o primeiro-ministro fosse Passos Coelho, ou um dos seus apaniguados, facilmente concluem que o enfraquecimento da resposta pública teria sido tal, que encararíamos a presente guerra com uma terrível falta de munições...

sexta-feira, 27 de março de 2020

As contas fazem-se agora e depois!


Não tem sido frequente, mas também sucedeu de quando em vez comigo aquilo de que o Miguel Guedes se queixa na sua crónica no Jornal de Notícias: aparecer-lhe quem ache ser este o tempo de unir forças não fazendo sentido um discurso marcado pelas diferenças entre as esquerdas e as direitas. Algo do tipo ontem aqui verberado a propósito de José Miguel Júdice, que quereria ver um governo de união nacional a responder a estas circunstâncias excecionais como se o de António Costa não esteja a fazer tudo quanto é possível e necessário com o agrado manifesto da maioria dos portugueses como o atestam as sondagens.
Esses que vêm com a falácia de não se justificarem divisões são os apoiantes dos que, entre 2011 e 2015 perpetraram tais cortes no setor, que quatro anos de recuperação não bastaram para pôr cobro a todos os danos suscitados pela sua herança de má memória. São os mesmos que, para evitarem essa chatice que continua a ser a existência de classes sociais com interesses contraditórios, gostariam de nos convencer sobre o fim das ideologias, porque as sabem capazes de lhes darem cabo deste estado de coisas em que se sentem confortáveis. São os mesmos que se incomodam com as evidências de nada de essencial ter faltado até aqui nos hospitais e serviços do SNS, mas não veem qualquer problema nas perguntas acintosas dos supostos jornalistas (na realidade ativistas das direitas) que, todas as manhãs procuram - em vão, reconheça-se! - pôr em causa a fiabilidade dos números apresentados pelo secretário de Estado, a ministra ou a diretora-geral de saúde.
Por isso mesmo concordo em absoluto com o cronista do Jornal de Notícias, quando ele diz que “as contas fazem-se agora. É nos momentos de crise que percebemos como tantas das nossas prioridades estão invertidas, como tantas das nossas (não) opções se arrastam para a irreversibilidade pela aceleração dos tempos. Este é um momento de emergência, exigência e urgência. É aqui, não depois de sairmos de um pesadelo, que devemos deitar contas à vida por muitas decisões políticas passadas que quase desmantelaram o SNS, sem dó nem piedade.”
Daí que reitere essa regra: as contas fazem-se agora e depois do fim do jogo como defendia um célebre capitão do clube do mesmo cronista. Porque no agora e no que se seguirá será sempre imperioso dividir as águas entre aqueles que sempre defenderam o Serviço Nacional de Saúde e o querem mais forte e os que contra ele votaram desde início e só se fazem seus paladinos quando lhes dá jeito. E aqui Marcelo está obviamente incluído.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Porque importa que sejam poucos os que se juntem aos vilões


À partida julgaria improvável que a desumanidade de uns quantos energúmenos não chegasse à dimensão do sucedido na localidade andaluza de La Linea de la Concepcion: as ambulâncias que transportaram vinte e oito idosos infetados foram apedrejadas e as instalações que os receberam atacadas com engenhos explosivos. Mas, depois, associando a notícia com a de alguns meses e atrás quando as direitas espanholas celebraram o afastamento do PSOE do governo da Andaluzia pela primeira vez em democracia, porque se associaram aos fascistas do Vox, entendemos melhor o significado profundo do sucedido. Porque tem-se verificado em vários países a confirmação do provérbio: junta-te aos bons, e serás como eles; junta-te aos maus e serás pior que eles.
De facto enquanto vigoraram linhas vermelhas a impedirem que partidos cristãos-democratas se associassem às extremas-direitas, aqueles continuaram a mascarar a sua natureza por trás de alguns princípios tidos como essenciais. Mas tão só dispostos a aliarem-se a elas para mais facilmente destronarem as esquerdas do poder, constatou-se espúria qualquer distinção entre uns e outros.
O exemplo andaluz serve-nos de pré-aviso quanto ao que pode suceder se, confirmando o que disseram nas respetivas campanhas internas, os líderes do PSD e do CDS não vejam qualquer problema em aliarem-se ao Chega. Uma sociedade em que um tipo de aliança desse tipo se forja prescinde dos seus principais valores civilizacionais e adota comportamentos bárbaros. Não foi por acaso que, no tempo da troika, um deputado do PSD falou da dispensável peste grisalha. Os conceitos desse timbre agitam-se nessas cabeças e, acaso encontrem alibi nas alianças às extremas-direitas, saem livremente sem qualquer moderação quanto a uma ética, em que efetivamente não se reconhecem.
Vemos isso lá fora, quando Bolsonaro arrisca a vida de milhões de brasileiros considerando o covid-19 uma espécie de «resfriadinho». Ou Trump, que quer a economia a funcionar plenamente antes da Páscoa, porque sabe o destino  a si reservado ao chegar à eleição de novembro com a bolsa muito abaixo das cotações de há três anos e meio e a taxa de desemprego a alcançar uns históricos 13% como prevê a Morgan Stanley. Ou ainda Viktor Orban, que dando um passo mais na sua absoluta ditadura, quer passar a governar por decreto. Ou Netanyahu, que aproveita a crise sanitária para adiar mais uma vez o seu encontro com o cárcere.
Mas todos esses são crápulas de alto gabarito. Não se pense, porém, que os não temos em dimensão mais reduzida, mas igualmente nociva, como sucede com os alarmismos do vice-presidente do PSD, que é edil em Ovar e põe em causa os números da Direção Geral de Saúde como se não nos lembrássemos de como ignorou os conselhos para não levar por diante os festejos de Carnaval. Ou outro autarca do PSD, Almeida Henriques - notório passista  e apoiante de Montenegro - que veio reclamar para o hospital de Viseu meios para ele não previstos por não ser considerado de primeira linha no combate ao flagelo. Ou ainda os jornalistas que interpelam Graça Freitas e o secretário de Estado, ou a ministra da Saúde, nas conferências de imprensa do meio-dia, cujas perguntas acintosas merecem, segundo o diretor do «Diário de Notícias», que se os convidem a irem dar banho ao cão.
Estamos, pois, num tempo em que a barbárie, a estupidez e o oportunismo andam de mãos dadas para contrariarem aquilo que a maioria dos portugueses já reconheceu nas sondagens dos últimos dias: que António Costa é o político mais confiável para levá-los a superar este momento difícil. Não admira, por isso, que prevendo o quanto isso porá em causa os seus interesses ideológicos, José Miguel Júdice ande a clamar por um governo de unidade nacional. Ele sabe que, vencida a tormenta, o eleitorado apoiará quem se mostrou à altura das circunstâncias quando elas se declararam...

quarta-feira, 25 de março de 2020

Um senhor perante tão frágeis meninos


Debate quinzenal de ontem à tarde resumido em quatro momentos, invariavelmente relacionados com os suspeitos do costume.
Rui Rio continua a surpreender pela inabilidade, que se julgaria melhor controlada com a vasta experiência de muitos anos na política. Ou seja, em vez de reconhecer o erro e convidar  alguns dos seus deputados a saírem para respeitarem a regra aprovada quanto ao número dos que deveriam estar presentes decidiu dar-lhes um violento puxão de orelhas só demonstrativo da sua incapacidade de liderança. É que se eles não seguem as suas orientações, quem as seguirá?
Telmo foi ... Telmo. Ou seja um previsível atoleimado.
Ventura persiste no tipo de exaltação de um toiro a irromper numa praça para enfrentar o seu matador, mas essa entrada de rompante salda-se com uma retirada triste, a lamber as feridas das breves, mas profundas estocadas, que Costa lhe desfere. Não precisando de muitas palavras para o designar como um dos boateiros que muito bem dispensamos nesta altura.
E o grande momento da tarde foi o propiciado pelo Cotrim da Iniciativa Liberal. O privatizador-mor vinha exigir mais pródigos apoios do Estado e levou de volta o que estava a precisar: corresponde àquele tipo de liberal que, em tempos fartos, quer minimizar o Estado à sua expressão mais diminuta, mas logo armado em paladino da Iniciativa Estatal quando eles se revelam complicados para o tipo de patronato do seu agrado.
No fundo o debate correu como de costume. Perante os seus críticos, Costa porta-se como um senhor e redu-los à dimensão de frágeis meninos.

terça-feira, 24 de março de 2020

Aquele que está vivo não diga nunca NUNCA!


De súbito aqueles princípios que constituíam o credo axiomático da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Eurogrupo começam a ceder por efeito da força das circunstâncias: Ursula von der Leyen deixou cair a regra da obrigatoriedade do défice abaixo dos 3%; Christine Lagarde, depois de ter dito o contrário, travou às quatro rodas e veio anunciar um vasto programa de compra de dívida pública dos países-membros; e hoje é o dia em que o Eurogrupo começa a discutir a possibilidade de lançar os eurobonds.
A insólita solidariedade europeia tem uma explicação: enquanto em 2008 a crise dos subprime incidira em força nos países do sul, a do coronavírus atinge todos por igual. Para os alemães, holandeses ou finlandeses deixa de fazer sentido a tese oportunista de serem os “madraços” do sul os culpados do que lhes vai acontecendo, porque, se numa primeira fase terão tido essa ilusão ao verem-na a grassar em Itália ou em Espanha, as evidências dos dias mais recentes demonstram-nos igualmente vulneráveis ao malfadado vírus. Porventura mais porque nalguns casos terão minimizado uma ameaça, que se mostra agora avassaladora.
Servirá este momento para que a Europa mude alguma coisa depois de anos a fio enquistada nos dogmas que Schäuble tanto se esforçou em torná-los inquestionáveis, servindo-se da troika como sua santíssima trindade? Não há que alimentar grandes ilusões! Infelizmente a resiliência do capitalismo continua admirável e não é o facto de dar sinais de rebentar aqui e além por algumas costuras, que o porá globalmente em causa no curto ou médio prazo. Mas que algo poderá permanecer e alimentar devir diferente, historicamente anunciado por pequenas mudanças que enchem lentamente o copo e o acabam por fazer extravasar, é sempre hipótese a considerar. Para já estamos naquela fase, que um poema de Brecht traduzia na fórmula: aquele que está vivo não diga nunca NUNCA! Porque algumas das muralhas, até agora inexpugnáveis, estão a dar mostras de tremerem...

segunda-feira, 23 de março de 2020

Milagres à vista nalguns mediáticos arrependidos


Passámos o primeiro domingo em estado de emergência e as inquietações podem moderar-se com a constatação de só termos a epidemia a crescer em progressão aritmética, e não exponencial, o que prefigura a possibilidade de o nosso saldo final de infetados e vítimas mortais não equiparar-se ao verificado por quase toda a Europa. Tanto mais que, quer em Espanha, quer em Itália - mesmo ainda correspondendo a números assustadores -, a curva parece finalmente achatar-se, tendendo para a almejada inflexão. Mas, a serem verdadeiras as imagens de gente a passear-se por marginais de algumas cidades, ostensivamente a desrespeitarem as regras impostas pelas circunstâncias, temos de reconhecer que a inépcia mental ganha em algumas cabeças uma perigosidade acima da do próprio vírus.
Nas redes sociais há quem levante uma questão pertinente: podemos imaginar o molho de brócolos em que nos veríamos se não tivéssemos António Costa como primeiro-ministro? Se fosse Passos Coelho a liderar o combate à ameaça com o velho preconceito neoliberal de ser judiciosa a ideia de «menos Estado, melhor Estado»? Ou mesmo Rui Rio, que nos tem brindado nos meses anteriores e subsequentes á da sua confirmação como presidente do PSD, com inauditas contradições com o que aparentemente algum dia terá defendido, apenas movido pela lógica do bota-abaixo? Se com um governo a tática pode colher sucesso, ainda que reduzido, junto dos cristalizados antissocialistas, ela de nada serviria com um vírus contra o qual pagaríamos avultados custos com tais ambiguidades.
Há, porém, algo que, de além-Pirenéus, está a sobrar como inesperada consequência desta crise: o de figurões em tempos aparentados aos socialistas andarem agora a descobrir as virtudes do Estado e os malefícios dos mercados. Emmanuel Macron, que tanto ajudou François Hollande a quase destruir o PS francês, veio agora dizer com falsa candura que “será preciso amanhã tirar lições do momento que atravessamos, interrogar o modelo de desenvolvimento em que há décadas o nosso mundo se envolveu e que agora mostra as suas falhas à luz do dia, questionando também as fraquezas das nossas democracias.”
O espanto não fica por aqui: o antigo quadro do Banco Rothschild não se limita a criticar o capitalismo selvagem também reconhecendo que “há bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado”.  Jesus, que sabemos ter dado a visão a cegos e curado leprosos, dificilmente conseguiria tal milagre: a conversão de um tão dedicado paladino da financeirização das economias à bondade das receitas socialistas.
No mesmo sentido pronunciou-se Jacques Attali, que foi conselheiro de Mitterrand e depois flirtou com a presidência de Sarkozy. Numa entrevista afirma ter colhido da História a lição de só evoluirmos decisivamente, enquanto Humanidade, quando vivemos a experiência do medo. Por isso pressupõe virem aí tempos de virar costas a uma sociedade baseada no egoísmo e no lucro, privilegiando a empatia e o altruísmo.
Não é que estas confissões de fé dos arrependidos da decadente social-democracia nos devam comover. Pelo contrário até podem significar que, perante a perspetiva de se tornarem imperiosos os valores do socialismo democrático, os paladinos da sua contenção em proveito dos que defendem os interesses dos mercados, venham propor novas versões recauchutadas da falaciosa Terceira Via. Na tal lógica de parecendo mudar alguma coisa, deixarem tudo na mesma...

sábado, 21 de março de 2020

Saudemos a competência de quem nos guia neste aperto


Por estes dias quase só dou atenção à conferência do meio-dia para saber o que a ministra, o secretário de Estado e a diretora-geral da Saúde nos têm a dizer sobre a evolução do covid 19  nas vinte e quatro horas anteriores, sempre me agradando a constatação de manter-se aritmética, e não exponencial, a propagação do vírus. O tom assertivo com que todos falam motiva a confiança de quem os ouve sobre a competência e sensatez de quem está na linha da frente do combate a esta crise. É essa aliás a constatação ouvida de quem contacto noutros países, onde os (des)governantes estão a sujeitar-se a crescente contestação por terem agido tarde e a más horas.
Aqui em Portugal os números não ganharam até agora tão significativa expressão, porque António Costa e a sua equipa têm sabido encontrar a cada momento as decisões certas para limitarem os danos causados pela crise. Por isso mesmo há quem, de fora, nos felicite por termos ao leme quem melhor nos porá a melhor recato desta súbita tempestade. Mas muitos há que procuram manchar o mais possível o imparável ascendente que as circunstâncias dão ao governo  comparativamente com as demais forças políticas. Já não falo do deputado fascista que, no início dos acontecimentos, quis pôr em causa as capacidades de Graça Freitas como se todo o percurso profissional dela como médica não tivesse sido o de epidemiologista. Há, sobretudo, coisas que vou ouvindo nas televisões e me levam a logo fazer zapping. Por exemplo as sempre insidiosas perguntas dos «jornalistas» televisivos, sempre ávidos na procura dos mínimos indícios, que deem munições às almejadas teses de se ter podido fazer mais até agora e ainda muito, mas muito  mais daqui para a frente. Esta manhã, numa entrevista à SIC, um autoproclamado provedor dos interesses dos pequenos empresários insurgia-se contra a pequenez dos apoios já anunciados, como se o Tesouro português estivesse a abarrotar com tantos recursos e fosse possível agora gastar à tripa-forra. Ou anda por aí a espalhar-se uma mensagem vinda da China em que um imbecil anda a usar o termo «vergonha» - que sabemos bem quem dele tem usado e abusado! - para classificar o que se vem passando em Portugal, ignorando voluntariamente que, comparativamente com todo o resto da Europa se verifique neste cantinho à beira-mar plantado um dos menores índices de infetados e de mortos por mil habitantes..
Volto aqui a indignar-me com os críticos das obras feitas, quando os sabemos sequer incapazes de as saberem minimamente executar. Criticar é fácil e é isso que as direitas mais ou menos extremas farão sempre que se lhes der o ensejo. Mas tal qual sucedia com as caravanas, que se dirigiam para o Oeste selvagem, o rumo imprimido por António Costa ao que tem feito e irá fazer não pode ter contemplações com os impotentes latidos dos que a tudo assistem das confortáveis bancadas em que se acoitam.

sexta-feira, 20 de março de 2020

E ouvem-se novamente os pássaros


De vez em quando recordo Albert Memmi, autor da frase lapidar segundo a qual o desesperado, ao não ter outra possibilidade, ri. Por isso constata que um dos sítios onde se contaram mais anedotas foi no gueto de Varsóvia, durante o cerco nazi. O exemplo serve para dar substância ao que disse um outro grande poeta, Paul Éluard, autor dos iluminados versos: au bout du chagrin/ une fenêtre ouverte,/ une fenêtre éclairée.
Vêm estes exemplos a propósito da constatação que outro francês, Hervé Gardette, acaba de confessar com grande satisfação: confinado em casa, mas possuidor de uma varanda no bairro da Bastilha, muito perto do bosque de Vincennes, surpreendeu-se nestes dias com o silêncio à sua porta. Nem carros a entrecruzarem-se na avenida, nem a algazarra da miudagem, nada a não ser o silêncio. Ou quase! Porque, para surpresa sua, deu consigo a ouvir a passarada, há tanto tempo ofuscada pela barulheira infernal do bulício quotidiano.
Numa altura em que se lamenta a redução drástica do número de aves, explicada em grande parte pela ocupação urbana dos campos, que as privam dos insetos de que se alimentam, os pássaros voltaram a estar presentes nos ouvidos desse confinado citadino. E ele confessa-se desnorteado perante o dilema: significa o regresso de algo que se perdeu ou o usufruto derradeiro de uma sensação em vias de definitiva extinção?