sexta-feira, 20 de março de 2020

E ouvem-se novamente os pássaros


De vez em quando recordo Albert Memmi, autor da frase lapidar segundo a qual o desesperado, ao não ter outra possibilidade, ri. Por isso constata que um dos sítios onde se contaram mais anedotas foi no gueto de Varsóvia, durante o cerco nazi. O exemplo serve para dar substância ao que disse um outro grande poeta, Paul Éluard, autor dos iluminados versos: au bout du chagrin/ une fenêtre ouverte,/ une fenêtre éclairée.
Vêm estes exemplos a propósito da constatação que outro francês, Hervé Gardette, acaba de confessar com grande satisfação: confinado em casa, mas possuidor de uma varanda no bairro da Bastilha, muito perto do bosque de Vincennes, surpreendeu-se nestes dias com o silêncio à sua porta. Nem carros a entrecruzarem-se na avenida, nem a algazarra da miudagem, nada a não ser o silêncio. Ou quase! Porque, para surpresa sua, deu consigo a ouvir a passarada, há tanto tempo ofuscada pela barulheira infernal do bulício quotidiano.
Numa altura em que se lamenta a redução drástica do número de aves, explicada em grande parte pela ocupação urbana dos campos, que as privam dos insetos de que se alimentam, os pássaros voltaram a estar presentes nos ouvidos desse confinado citadino. E ele confessa-se desnorteado perante o dilema: significa o regresso de algo que se perdeu ou o usufruto derradeiro de uma sensação em vias de definitiva extinção?

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