segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Uma narrativa a desmoronar-se

 

Se o incipit do Manifesto de Marx e Engels - a história de toda a sociedade até aqui é a história da luta de classes -  define logo o ponto de partida para as propostas a seguir emitidas para consubstanciar aquilo que na apresentação tinham definido como um espectro em vias de assombrar a Europa, Piketty enceta o seu Capital e Ideologia com uma interpretação equivalente do atual estado das coisas: cada sociedade humana tem de justificar as suas desigualdades sob pena de ver ameaçada a estabilidade do edifício político-social em que assenta. Essas desigualdades têm de ser legitimadas através de regras passíveis de estruturar o conjunto da sociedade e as tornem aceites por quase todos.

Nas sociedades contemporâneas a narrativa, que prevalece é a da valorização do empreendedorismo e da meritocracia que bastariam em si mesmos para fundamentarem a acumulação de capital traduzida na posse de propriedades. Estas resultariam de um mercado livre, tanto quanto possível desregulamentado para melhor potenciar o mérito desses empreendedores, e em que as desigualdades de rendimentos resultariam de uns o terem e os outros não. Os ricos representariam, assim, a componente social mais útil, porque, aumentando os rendimentos, mais investiriam em novos negócios e mais empregos e melhores salários propiciariam aos outros estratos sociais. Ao contrário das sociedades anteriores a riqueza explicar-se-ia por razões diferentes das outrora verificadas nas dinastias, que a passavam de pais para filhos, fosse por deterem títulos nobiliárquicos, fosse porque, mesmo sem eles, comportavam-se como tal.

Conhecendo particular expansão durante o reaganismo  e o thatcherismo essa narrativa está a chegar a uma fase em que dificilmente demonstra o interesse coletivo, que tendencialmente prometia cumprir. Esse discurso meritocrático e empreendedor constitui, hoje, o falso alibi dos mais ricos para justificarem a agudização das desigualdades, que se vêm acentuando particularmente a partir da crise financeira de 2008 e que a atual pandemia só agravou um pouco mais.

Hoje os perdedores deste atual sistema económico sentem injusta a estigmatização por não serem tão “talentosos” na criação de riqueza nem verem satisfeitas as ambições quando se arriscam a explorar as supostas virtudes empreendedoras. Os últimos meses têm demonstrado como um abanão nos frágeis equilíbrios sociais e económicos potencia o lauto crescimento da necrologia de negócios insolventes.

Da refutação dessa culpa à indignação pelo logro em que terão embarcado - eis como se pode caracterizar um momento histórico, que lembra outros, justificativos da célebre máxima maoísta da seca pradaria em vias de ser violentamente incendiada por uma mera faísca.  Muito embora possamos ser enganados pela aparente calma social ela pode anunciar reviravoltas para as quais as esquerdas se devem preparar. Porque as direitas entrincheiram-se tanto quanto podem nas suas arruinadas fortalezas.

domingo, 29 de novembro de 2020

Um tripé com garantias de estabilidade

 

O recado foi direitinho para Catarina Martins e para quantos andam por estes dias a sugerir a periclitante estabilidade do governo de António Costa: no discurso final do Congresso, que o reelegeu como secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa não mudou um milímetro na cassete sobre as supostas políticas de direita, implementadas há muito no país com a conivência entre o PS e o PSD, mas comprometeu-se a viabilizar orçamentos e moções de confiança tão-só consiga negociar medidas favoráveis a quem trabalha. O que equivale a dizer a António Costa que, mesmo tendo de fazer orelhas moucas a muito do que os deputados comunistas disserem contra si, poderá sempre contar com o seu apoio conquanto aceda em negociar avanços às conquistas anteriormente garantidas.

Doravante o Bloco de Esquerda pode considerar-se dispensável para quanto for decidido para a retoma económica e a recuperação da qualidade de vida e dos empregos de quem, por ora, sofre algumas das consequências mais gravosas da atual pandemia. Essa irrelevância prejudicará necessariamente o apoio do eleitorado de esquerda, que via o partido tutelado por Francisco Louçã como uma das imprescindíveis componentes do tripé em que assentava a governação. Até porque, atendendo à composição da CDU, esse tripé continuará a ter condições para manter-se estável, distante do tal pântano para o qual tantos gostariam de o ver tombar.

Com um PSD entregue a um Rui Rio, que não se tolhe em disparar continuamente tiros para os próprios pés, com um CDS reduzido à dimensão grupuscular, afinal a mesma a que se condenam o Iniciativa Liberal e o Chega, António Costa pode ocupar inteligentemente o espaço sociológico do centro e do centro-esquerda, deixando ao PCP a possibilidade de se reavivar numa esquerda donde Catarina Martins conseguiu apagar o seu partido. E o cenário internacional que, com Biden na Casa Branca tenderá a minguar as ambições populistas, é o espaço por estas ocupadas nos dois extremos que se anunciam comprometidos...

sábado, 28 de novembro de 2020

Um agitador esfomeado

 

Recurso corajoso de gente que nunca mais esqueceremos,  e de que o irlandês Bobby Sands será sempre o mais representativo, a greve da fome tem vindo a ser adotada por estarolas de direita, senão mesmo de extrema-direita, que julgam colher simpatias mediáticas à conta da intenção de fazerem abrupta dieta. Que não tem resultado demonstra-o o dito presidente de um mini-sindicato de enfermeiros que, em fevereiro de 2019, empreendeu esse tipo de propaganda em frente ao palácio de Belém e teve de desistir ao fim de poucos dias, porque depressa todos lhe foram indiferentes, sobretudo os que poderiam satisfazer-lhe as absurdas reivindicações. Acresce que o vimos tão anafado quanto então o conhecêramos da última vez quando as televisões lhe voltaram a dar alguns minutos de importância esta semana. Agora é a vez do tal chefe de cozinha originário de uma península europeia pródiga em extremistas fascistas, aqui disposto a replicar-lhes o tipo de agitação, movimentando donos de restaurantes para dar aos prosélitos do Ventura a oportunidade de agitarem as suas bandeiras e proferirem as costumadas alarvidades.

Desconheço se, vinte e quatro horas passadas, o agitador mantém o protesto ou se as esfomeadas entranhas já o devolveram ao recato donde tanta dificuldade tem em se confinar.

Azar dele e de todos os negacionistas que se lhe associam os resultados da sondagem Aximage hoje anunciada pela TSF e pelo Jornal de Notícias: não só 57% dos portugueses consideram as medidas de restrição para estes fins-de-semana adequadas, como os restantes se dividem entre os que as entendem exageradas por excesso ou por defeito. O que significa quase 80% da população de acordo com os horários impostos aos restaurantes, ao comércio em geral e à proibição em sair-se da área do concelho em que se vive. E para o Natal e Ano Novo a aceitação de tais restrições mantém-se idêntica. E, se pensavam deteriorar o grau de confiança dos portugueses no governo de António Costa podem tirar os cavalinhos da chuva, porque 36% atribuem-lhe grande confiança a que se somam 31% a olhá-lo com mediana confiança.

Acresce enfim que a sondagem também não favorece os defensores da lógica de quem quiser saúde e tiver de a pagar (aos provados, claro): 45% demonstra uma grande confiança no Serviço Nacional de Saúde, somando-se-lhes 25% que dilatam esse juízo para o critério de «muito grande confiança».

Em suma: por muito que as direitas e a generalidade da imprensa ao seu serviço, queira resgatar a ideia de se estar a viver num «pântano» como o definira António Guterres antes de sair do governo, bem podem esperar sentados. O governo de António Costa aufere de merecido apoio em quem determinará a sua continuidade por muitos e bons anos...

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Singulares erros de cálculo

 


Tem de se reconhecer alguma desfaçatez a Catarina Martins para pronunciar uma ameaça velada a António Costa, quando fez a declaração final antes da votação do Orçamento Geral do Estado para 2021: dado que Rui Rio saiu definitivamente do armário ao assumir a união de facto com André Ventura, o Partido Socialista só poderá continuar a ser governo se se render definitivamente á chantagem do Bloco de Esquerda.

Tenho conhecido muitos exemplos políticos de erros de cálculo, mas espanta-me como, mesmo com Mariana Mortágua ao lado - que é suposto saber como se fazem contas! - Catarina Martins arrisque tal prosápia. Porque, por um lado, esse indecoroso romance entre Rui Rio e Ventura (que declaração de amor tão cor-de-rosa este fez ao seu recente noivo na conferência de imprensa no final da sessão!), tenderá a afastar do PSD os eleitores do centro-direita que não se reveem nesses enlaces tão contranatura. Por outro lado a própria Catarina Martins poderá verem mudar-se para os antigos parceiros da dita Geringonça aqueles eleitores que arriscavam dar-lhe o voto porque sabiam-no confiado a quem apostaria numa convergências das esquerdas com um tempero um bocadinho mais radical. Os primeiros indícios das sondagens, quer para o Bloco, quer para a sua candidata presidencial, tendem a corroborar esta presunção.

Daí que a imagem lamentável de ver os deputados do Bloco a levantarem-se ao mesmo tempo que toda a direita e extrema-direita para porem em causa um orçamento, que nada reverte do conquistado na legislatura anterior e até prossegue com avanços notórios no sentido de uma maior correção das desigualdades sociais, será uma mancha para que nenhum tira-nódoas poderá encontrar solução. Por muito que António Costa aja com a máxima racionalidade, quem poderá criticá-lo por nesta altura estar possivelmente a pensar que cá se fazem, cá se pagam? E o Bloco poderá minguar-se para a dimensão, que a imaturidade dos seus dirigentes afinal justifica. Estes esquecem o quanto o primeiro-ministro é experimentada raposa, que de já muitas armadilhas políticas se soube livrar a contento.

Quanto ao saldo só vi corroboradas as razões porque, depois de concluir pelo injustificado cumprimento da expetativa de votar em Marisa Matias nas presidenciais, volvi a intenção de voto para quem, através da sábia, mesmo que exigente, conduta durante a negociação do referido Orçamento, assegura a continuidade do governo em que confio no período pós-pandemia quando mais importa que a comprovada competência de quem já nos livrou dos desmandos de Passos Coelho volte a ser plenamente concretizada em políticas eficazes.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O PREC quarenta e cinco anos depois

 


O José Mário Branco cantou-o como sonho lindo que acabou. Porque depois veio o FMI, o forrobodó das agências de espionagem a manipularem as suas marionetas e, quatro anos depois, a AD desse homem pequenino, a quem ninguém reconheceu dotes de competente dançarino.

Há quarenta e cinco anos viveram-se vários golpes de Estado no mesmo dia. O primeiro, o mais desastrado e desesperado, foi o das extremas-esquerdas, que sentiam, dia-a-dia, o chão fugires-lhe debaixo dos pés. O outro, igualmente falhado, foi o das direitas e extremas-direitas que se haviam colado oportunisticamente ao PS de Mário Soares para alcançarem o seu objetivo: pôrem fim à Revolução dos Cravos e imporem um regime pós-marcelista em que os socialistas figurassem um pouco á maneira de um berloque decorativo. E prevaleceu o contragolpe dos militares do grupo dos Nove, que ambicionavam replicar em Portugal o tipo de democracia europeia em que os patrões explorassem comedidamente os trabalhadores e a estes fosse dada a ilusão, através  dos sindicatos e de uma aparência de cogestão das empresas, de não serem demasiado espoliados nas mais-valias que produzissem.

À distância uma análise racional conclui que as extremas-esquerdas - à exceção do Partido Comunista, que ficou a ver como evoluíam as ondas para melhor nelas surfar consoante se viessem a revelar mais ou menos agitadas! - não quiseram entender a impossibilidade prática de concretizarem esse tal sonho: numa população em grande parte analfabeta, rendida aos ditames dos padres e dos caciques da província, nunca poderiam deter uma relação interna de forças, que possibilitasse um avanço progressista para algo inexistente em parte alguma do mundo. Mais cínica e inteligente as direitas souberam aproveitar-se do anticomunismo agudizado dentro das hostes socialistas para as colocarem ao seu serviço e adiantarem-lhes a sementeira, que sabiam depois vir a colher.

Está por fazer o trabalho histórico de juntar as muitas entrevistas e artigos de Mário Soares nos seus últimos trinta anos de vida para dar conta de como ele evoluiu do contrarrevolucionário de 1975 para posições muito à esquerda do político de então. Como Presidente da República já pouco pôde contrariar uma prevalência das direitas, que Cavaco Silva formataria da maneira que se sabe. E, depois, quer apoiando Guterres, Sócrates ou António Costa, ele terá pretendido reativar essa esperança numa sociedade sem classes como é o socialismo, mas em ambiente de liberdade, o que, neste momento histórico, ainda corresponde a uma quadratura do círculo.

Há quarenta e cinco anos, o 25 de novembro correspondeu, pois, à tentativa das extremas-esquerdas darem dois passos para diante, acordando depois numa sociedade em que muitos foram os que vieram para trás.

 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Foi há três semanas!

 


Não foi tão fácil quanto o meu inveterado otimismo predizia, mas consumou-se de facto: Joe Biden será o próximo presidente dos Estados Unidos e Donald Trump vai direitinho para o caixote do lixo donde dificilmente será resgatado. Três semanas depois e a muito custo ele atira a toalha ao chão!

Voltarei a ser demasiado confiante no futuro ao predizer que Trump depressa subscreverá o que Giulio Andreotti disse uma vez sobre o poder: que ele depressa desgasta quem o não tem? Poucas dúvidas tenho em como depressa ele o sentirá, causando-lhe as merecidas dores de quem verá o incurável narcisismo reiteradamente frustrado nos seus pensamentos mágicos. Não é difícil congeminar a forte possibilidade de haver quem esteja a fazer as contas no Partido Republicano para, daqui a quatro anos disputar a Casa Branca, desde o ultrarreacionário Ted Cruz ao oportunista Marco Rubio sem esquecer Chris Christie, que foi próximo de Trump, mas agora se apressou a dele se distanciar. E este último caso é particularmente lapidar: para muitos políticos republicanos a proximidade a quem agora foi derrotado funcionará como um estigma, de que se pretenderão dissociar o mais depressa possível.

Por muito que procure disfarçar o quanto o seu «império» imobiliário se assemelha a um castelo de cartas, não tardará que Trump confirme não haver quem lhe suporte as birras e, muito menos, lhe financie os planos mirabolantes para voltar à Casa Branca em 2025. A exemplo de outros líderes que, em tempos, detiveram muito poder, ele só não será esquecido porque a sua Administração  imitou-os no que terá sido uma sucessão ininterrupta de tudo quanto a política internacional hoje mais dispensa; arrogância, preconceito, falta de empatia com as opiniões divergentes.

Três semanas depois pode-se reconhecer que o mundo ficou bem mais aligeirado com a confirmação da notícia tão desejada. Depois de quatro anos a vermos o planeta piorar em tensões políticas e em agravamento das condições climáticas podemos esperar que algo mude para que as coisas, desta feita, não fiquem na mesma. E a nomeação de John Kerry para liderar a inversão da estratégia norte-americana em relação ao problema mais candente da nossa era antropocénica alimenta as expetativas quanto a isso vir a ser um facto... 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O capitalismo mata, oh se mata!

 


Numa crónica deste fim-de-semana o jornalista Vítor Belanciano lembra que a ideologia neoliberal também mata. Como se comprova no lento genocídio perpetrado pelo exército israelita contra os palestinianos da Cisjordânia.

Há quase três semanas, quando estávamos entretidos com as eleições norte-americanas, o exército israelita cometeu mais um dos seus crimes no vale do Jordão: a pretexto de existirem pastores sedeados perto de um sítio dedicado aos seus exercícios militares, expulsaram-nos violentamente e, com bulldozers, arrasaram todos os haveres que eles não conseguiram pôr a recato. Mais de sete dezenas de pessoas, incluindo velhos e crianças, ficaram sem sítio onde cuidarem dos seus animais, depois de já anteriormente se verem despojados das terras, que cultivavam e agora ocupadas, ou em vias de o serem, por colonatos ilegais.

Com esta ação o exército israelita já tem no currículo deste ano mais de oitocentas pessoas expulsas das suas casas e terras, o que constitui um lamentável record em comparação com os anos anteriores. E o objetivo é muito claro: dado que o vale do Jordão concentra no seu subsolo uma boa parte dos recursos freáticos da região, os israelitas procuram tornar irreversível a ocupação de um território, que a ONU considera pertencente ao futuro Estado palestiniano.

Este exemplo é oportuno para levar em conta numa altura em que Rui Rio melhor se desmascarou mediante o obsceno acordo com os fascistas do Chega. Agora, como se os alhos tivessem alguma coisa com os bugalhos, procura atirar lama ao PCP a propósito de um Congresso, que este tem toda a legitimidade em organizar. Porque, quando se pretendem desqualificar os comunistas a propósito dos crimes cometidos no século passado por quem dessa ideologia se reivindicava, esquecem-se o quanto os que por cá militavam, tanto se bateram e sofreram, para porem fim ao salazarismo! E nem querem ouvir falar  dos crimes atualmente cometidos pelos que se reclamam do capitalismo mais ou menos selvagem: desde os campos de concentração nas ilhas gregas ou italianas para refugiados, que preferencialmente se deixam afogar no Mediterrâneo até aos concretizados pelos aliados desse capitalismo ocidental, seja em Israel, no Brasil ou na Arábia Saudita! Basta lembrá-los para lhes reconhecer nenhuma legitimidade moral para darem como definitivamente enterrada a ideologia que lhes dá insónias: o marxismo que está bem e se recomenda, continuando a ser a única alternativa a um neoliberalismo esgotado, incapaz de manter as ilusões de prosperidade, que as crescentes desigualdades vão desmentindo. Daí que a expulsão dos pastores palestinianos assente na mesma matriz de pensamento dos que por cá - assim o pudessem! -, fariam o mesmo a quem lhes tolhem as ambições...