Se o incipit do Manifesto de Marx e Engels - a história de toda a sociedade até aqui é a história da luta de classes - define logo o ponto de partida para as propostas a seguir emitidas para consubstanciar aquilo que na apresentação tinham definido como um espectro em vias de assombrar a Europa, Piketty enceta o seu Capital e Ideologia com uma interpretação equivalente do atual estado das coisas: cada sociedade humana tem de justificar as suas desigualdades sob pena de ver ameaçada a estabilidade do edifício político-social em que assenta. Essas desigualdades têm de ser legitimadas através de regras passíveis de estruturar o conjunto da sociedade e as tornem aceites por quase todos.
Nas sociedades contemporâneas a narrativa, que prevalece é a da valorização do empreendedorismo e da meritocracia que bastariam em si mesmos para fundamentarem a acumulação de capital traduzida na posse de propriedades. Estas resultariam de um mercado livre, tanto quanto possível desregulamentado para melhor potenciar o mérito desses empreendedores, e em que as desigualdades de rendimentos resultariam de uns o terem e os outros não. Os ricos representariam, assim, a componente social mais útil, porque, aumentando os rendimentos, mais investiriam em novos negócios e mais empregos e melhores salários propiciariam aos outros estratos sociais. Ao contrário das sociedades anteriores a riqueza explicar-se-ia por razões diferentes das outrora verificadas nas dinastias, que a passavam de pais para filhos, fosse por deterem títulos nobiliárquicos, fosse porque, mesmo sem eles, comportavam-se como tal.
Conhecendo particular expansão durante o reaganismo e o thatcherismo essa narrativa está a chegar a uma fase em que dificilmente demonstra o interesse coletivo, que tendencialmente prometia cumprir. Esse discurso meritocrático e empreendedor constitui, hoje, o falso alibi dos mais ricos para justificarem a agudização das desigualdades, que se vêm acentuando particularmente a partir da crise financeira de 2008 e que a atual pandemia só agravou um pouco mais.
Hoje os perdedores deste atual sistema económico sentem injusta a estigmatização por não serem tão “talentosos” na criação de riqueza nem verem satisfeitas as ambições quando se arriscam a explorar as supostas virtudes empreendedoras. Os últimos meses têm demonstrado como um abanão nos frágeis equilíbrios sociais e económicos potencia o lauto crescimento da necrologia de negócios insolventes.
Da refutação dessa culpa à indignação pelo logro em que terão embarcado - eis como se pode caracterizar um momento histórico, que lembra outros, justificativos da célebre máxima maoísta da seca pradaria em vias de ser violentamente incendiada por uma mera faísca. Muito embora possamos ser enganados pela aparente calma social ela pode anunciar reviravoltas para as quais as esquerdas se devem preparar. Porque as direitas entrincheiram-se tanto quanto podem nas suas arruinadas fortalezas.
Até agora, Jorge Rocha, a raiva acumulada só tem sido aproveitada por populistas de Direita. Cuidado com o que se deseja...
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