sexta-feira, 31 de agosto de 2012

FILME: «Enfants du paradis» de Marcel Carné - o projeto



Marcel Carné tem 37 anos e seis filmes já realizados, dos quais cinco considerados como clássicos, quando inicia a rodagem de «Enfants du Paradis» e tinha acabado de realizar «Les Visiteurs du Sir», que foi um dos maiores êxitos do cinema francês durante a Segunda Guerra Mundial.
Tendo assinado contrato para rodar três filmes com o produtor André Paulvé, perspetiva começar por «Nana» segundo Émile Zola, seguindo-se-lhe «Milord d’Arsouille» e «A Lanterna Mágica», quando encontra Jean-Louis Barrault em Nice por mero acaso, ator com quem já trabalhara em «Jenny» (1936) e «Drôle de Drame» (1937).
É ele quem lhe fala do mimo Jean Baptiste Debureau, que vivera no século XIX e criara a arte da pantomina no Teatro dos Funâmbulos, uma das salas mais conhecidas no Boulevard du Temple em Paris e se tornara conhecido por matar um bêbedo que o importunava. Barrault recorda-se de ter sentido a mesma excitação já vivida anteriormente, quando asistira ao primeiro filme falado de Charles Chaplin.
Nasce então a ideia de um filme que confrontaria o teatro falado e o mimo e onde o célebre ator da mesma época Frédérik Lemaître, tão elogiado por Victor Hugo ou Alfred de Vigny, também apareceria.
Jacques Prévert, que não apreciava a pantomina, não se interessou muito pelo projeto. Aceita-o, porém, quando se dá conta de que poderá igualmente inserir outro personagem histórico, Pierre-François Lacenaire, um criminoso diletante, que o fascinava. Como comentraria depois: Ninguém me permitiria fazer um filme sobre lacenaire, mas posso sempre metê-lo num filme sobre Debureau.
Uma vez decidida a equipa Carné muda-se para o sul da França, então ocupada pelos nazis. Jacques Prévert escreve o argumento, Alexandre Trauner esboça os cenários que serão assinados por Léon Barsaq por aquele ser judeu, enquanto Joseph Kosma é contratado para compor a música, depois assinada e desenvolvida por Maurice Thiriet pelas mesmas razões.
Carné coordena todos esses trabalhos e volta regularmente de Paris com montanhas de documentação requisitada a museus e outras instituições.
Desde que é conceptualizado, «Les Enfants du Paradis» será uma aventura coletiva, o que ajuda a explicar o seu sucesso.



FILME: «Les enfants du paradis» de Marcel Carné



Numa cidade como Paris não é difícil encontrar motivos de excitação quanto a grandes acontecimentos culturais a decorrerem, mas de entre eles o início da nova temporada da Cinemateca com a reapresentação e uma grande exposição sobre «Les Enfants du Paradis» de Marcel Carné assume particular destaque. Sobretudo para quem integra esse filme na restrita seleção de obras a levar para a suposta ilha deserta.
Estreado em Março de 1945 fora rodado ainda durante a Ocupação e em duas partes para cumprir a legislação de Vichy, que impedia os filmes comerciais de terem mais de noventa minutos. E a sua rodagem fora complicada com colaboração de judeus na clandestinidade (Alexander Trauner e Joseph Kosma) e de atores colaboracionistas: Robert Le Vigan (a quem a Resistência condenara à morte e obrigaria a substituir as cenas em que entrava por Pierre Renoir) e Arletty, que se gabava de ser francesa de coração, mas internacional quanto ao respetivo traseiro.
Mas a reprodução do ambiente teatral parisiense do século XIX, os diálogos do poeta Jacques Prévert e as interpretações de Barrault e de Arletty tornam a obra sublime, incomparável com qualquer outra…

POLÍTICA: Nuno Crato e os computadores

POLÍTICA: Os miolos salazarentos de quem nos (des)governa!


No seu discurso em Évora perante jovens militantes socialistas, Edite Estrela situou a polémica sobre a RTP numa outra vertente de análise que explicita melhor o alerta para as consequências de tal possibilidade na qualidade da democracia: com a concessão da RTP e o acabar do serviço público de televisão e de rádio, essa influência pode ainda ser reforçada ao nível da propriedade e do comentário. Eu sou pelo pluralismo e pelo serviço público de televisão.
É que a exemplo do que se passa na Hungria aonde Victor Orban conseguiu desalojar o Partido Socialista do Governo e impor modelos de controlo da informação já próprios de uma ditadura, a estratégia de Relvas e de Passos Coelho é imitá-lo na tentativa de influenciar a opinião pública de forma a mantê-la passiva para a sua estratégia ideológica.  Um bom exemplo pode ser o que vem sucedendo há vários dias: tal como o primeiro-ministro no inefável discurso no Algarve, António Borges voltou agora a «brilhar» com a previsão de fartas distribuições de benesses já no próximo ano. Isto quando Vítor Gaspar é obrigado a corrigir para mais de 5% o valor do défice e mendiga compreensão à troika, predispondo-se a apertar ainda mais o cinto aos contribuintes. Estamos, pois, na velha fórmula nazi de como se pode transformar em «verdade» uma mentira mil vezes repetida.
Não se pode, pois, dar inteira razão a Viriato Soromenho Marques, quando comenta no «Diário de Notícias» que o ministro Relvas é o contrário do Rei Midas. Em vez de ouro, tudo aquilo em que ele toca fica transformado numa espessa trapalhada cor de chumbo. A privatização, aliás "concessão", da RTP deixou de ser um assunto sério para descer ao nível rasteiro das coisas venais.
O que está em causa é muito mais do que uma coisa venal: é uma séria ameaça, que tem de ser impedida se não quisermos regressar à claustrofobia tenebrosa do Portugal salazarento.
Mas não é só a cúpula do Governo, que quer regressar a tempos, que, porém, nunca voltarão como desejaria. Um ministro como Nuno Crato não se cansa de inventar “transformações” educativas, que só teriam cabimento nesse passado de que ele se mostra entusiástico seguidor. E até um comentador insuspeito como André Macedo, que nunca vimos arriscar opiniões muito dissociadas do tradicional centrão, é obrigado a reconhecer no «Diário de Notícias» que Nuno Crato vive preocupado em exibir autoridade. Quer chumbar, punir, travar. Vê a escola como um centro de exclusão, não como espaço de desenvolvimento de competências sociais, culturais e técnicas - com regras, competição e exigência. Não tem um plano educativo desempoeirado: sofre de reumatismo ideológico. Engaveta os alunos. Encolhe o País. Reduz a riqueza. 
Num dia em que vemos Clint Eastwood predispor-se a apoiar o candidato republicano contra Obama tudo incita ao pessimismo. Mas a História multiplica-se em exemplos de como do mais negro dos contextos renasce a alegria transformadora da revolta dos humilhados e ofendidos...

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

POLÍTICA: Agir antes que tudo isto acabe muito mal...


Será que Passos Coelho começa a ter a verdadeira dimensão do repúdio que os portugueses manifestam pelas suas políticas? É que já passaram dias a mais sobre as tenebrosas declarações de António Borges a Judite de Sousa para só agora vir falar sobre o assunto, não propriamente para desmentir os propósitos então expressados, mas para classificar de histéricas as opiniões subsequentes.
É claro que ele e Relvas ainda julgam possível limitar os danos do escândalo ao alimentarem o «Correio da Manhã» com manchetes vergonhosas, ao esperarem que o Crespo da SIC ainda seja ouvido nas suas atoardas ou que o anão da Trofa vá esganiçando a voz na proposta para demitir a administração da RTP.
O futuro da liberdade de expressão em Portugal passa pelo que acontecer à televisão pública e a esquerda não pode tergiversar sobre o que com ela ocorrer. Porque António José Seguro não pode iludir-nos nem iludir-se com a eventual reversibilidade do negócio: concluído ele é todo o património cultural ligado à RTP enquanto veículo de expressão da democracia, que fica posto em causa. Comentava Nuno Ramos de Almeida no i a respeito das supostas reformas de Passos & Cª que o problema com este governo não é o da irreversibilidade das reformas que estão erradas, é o da irreversibilidade dos negócios que dão ao desbarato o património de muitas gerações de portugueses. Para este governo, os negócios são eternos. 
Na sua deriva descontrolada para as formas mais selvagens do criminoso sistema capitalista pode vir a ser muito danoso para a maioria dos cidadãos a entorse civilizacional, que está a ser tentada, como lembra Baptista Bastos no Diário de Notícias: A mística do neoliberalismo, perante um mundo sem pátria e de pensamento único, tem como objetivo o domínio pela obediência, pela submissão e pelo medo. O papel do sr. António Borges é o de um factotum desprovido de toda a singularidade. Em causa estão a grande crise de valores de que enferma a nossa época e a supremacia da finança sobre a diversidade civilizacional. Alegremente, caminhamos para o desconhecido, sabendo-se, de antemão, pelo que resulta da experiência, a configuração da catástrofe.
De todos os lados há vozes a clamarem por uma reação indignada e modelar contra este estado das coisas tendo em conta o quanto elas nos empurram para o abismo: os portugueses fizeram da troika o seu John Wayne. Pensaram que a sua chegada, com um Governo novo, chegaria para controlar o disparatado défice e o monstruoso Estado. Só que, na pistola, a troika apenas tinha uma munição: a paz em troca da desvalorização salarial. Os portugueses, na ruína, dobraram-se e tornaram-se um aluno perfeito. A ilusão está a dissipar-se. A política John Wayne, a continuar desta forma cega, arrisca-se a tornar o povoado não num lugar de paz mas num deserto de almas penadas, acorrentadas a impostos diz Fernando Sobral no Negócios.
E o mais greve nisto tudo é que o apocalipse anda a ser anunciado por fontes diversas, que até não acreditam nas mistificações do calendário maia. É que já não bastam os governos e os especuladores financeiros a quererem assassinar pela fome, pela miséria e pelo empurrão para o suicídio dos marginalizados do sistema e é toda a sociedade global a destruir ecossistemas fragilizados para explorar jazidas de petróleo em terrenos xistosos, madeiras em florestas dizimadas ou para atulhar de lixo os oceanos do planeta. Escrevia há dias Mário Vieira de Carvalho no Público: nada define melhor a época em que vivemos do que a extrema contradição entre o grau de conhecimento que os humanos adquiriram sobre si próprios, a natureza, a sociedade, o mundo, o cosmos, e a pulsão de suicídio de que estão possessos. O fim da espécie humana é algo que já não se coloca como hipótese longínqua, mas sim como certeza que se torna cada vez mais próxima no nosso horizonte histórico. A continuar esta desvairada corrida para a catástrofe, fica em aberto apenas um de dois desfechos: ou os humanos liquidam a natureza, liquidando-se do mesmo passo a si próprios; ou a natureza se salva á custa do autogenocídio da espécie humana.


ÓPERA: o primeiro oratório foi «La Rappresentatione di Anima et di Corpo»



Se a Itália nunca conseguiu reconquistar o imenso império que os Romanos conseguiram possuir graças à eficácia das suas legiões, soube encontrar outros meios, mais pacíficos para partir ao assalto da Europa.
A Ópera, que inventa no início do século XVII faz parte desse arsenal artístico capaz de provocar a completa rendição de toda a Europa.
Seja florentina, romana, mas sobretudo veneziana e, um pouco mais tarde, napolitana, essa arte qye conjuga numa mesma alquimia sublime o verbo, a música e as imagens vai estar presente em todas as cortes e teatros de França, da Alemanha, da Áustria e da Inglaterra nos séculos XVII e XVIII.
Mesmo quando não são italianos os músicos adotam a língua de Dante, só surgindo alguns resistentes em França (com Lully e, depois, com Rameau) ou em Inglaterra (com Purcell).
Será preciso chegar ao século XIX para que Gluck e Mozart lancem as bases da ópera do século XIX sem, porém, rejeitarem a herança italiana.
Com Weber ou Wagner na Alemanha, com Glinka ou Moussorgski na Rússia, com Berlioz, Gounod e Bizet em França, com Smetana ou  Dvořák  na Boémia, mas também com Rossini, Donizetti ou Verdi na Itália, o século XIX é o da internacionalização da ópera. De facto, um século de ouro que vê esta arte deixar as margens da história da música para se dirigir para o lado da História.
A ópera, de início reservada aos aristocratas, depressa se tornou uma arte popular, refletindo a evolução social dos três séculos anteriores.
Mas tudo começa com a união de um rei francês com a filha de um grande duque da Toscânia. Os cronistas estão de acordo em conferir a «Euridice» de Jacopo Peri, baseado num libreto de Ottavio Rinuccini, o título de «primeira ópera da História da Música».
O acontecimento ocorreu em 6 de outubro de 1600 no palácio Pitti em Florença, quando Henrique IV e Maria de Medicis casam por procuração.
Um século depois da morte de Lourenço, o Magnífico, a orgulhosa capital dos Medicis inaugurava uma forma de criatividade que aliava a poesia à música na pátria de Dante Alighieri.
Cidade em permanente representação, Florença parecia predestinada para permitir o aparecimento da ópera.
Com a assinatura de Peri e de Rinuccini já tinha havido uma «Dafne» representada durante três anos de seguida durante os carnavais a partir de 1597 ou 1598. Só sobreviveu o poema, já que os pequenos fragmentos musicais que chegaram até nós não permitiram classificar esta obra como a de estreia na arte líric.
Contudo a ópera não apareceu por geração espontânea e é preciso quase recuar um quarto de século para lhe encontrar os primórdios.
A partir de 1576 poetas, músicos e outros intelectuais integram uma tertúlia em casa de Giovanni de bardi, conde de Vernio (1534-1612), mecenas, escritor e também compositor.
Esse cenáculo frequentado nomeadamente por Emilio de Cavalieri (1550-1602), Girolamo Mei (1519-1594), Piero Strozzi (1550-1609), Ottavio Rinuccini (1562-1621), Giulio Caccini (1551-1618), Vincenzo Galilei (1520-1591 e pai de Galileu), apaixona-se por todos os domínios do conhecimento e das artes desde a poesia à astrologia.
Contudo a Camerata Bardi (também conhecida por Camerata Florentina) preocupa-se essencialmente por reformar a música. Trata-se, pois, de um laboratório criativo apostado em criticar o contraponto polifónico como se encontrava nos madrigais ou nos motetes.
No manifesto da monodia, o Dialogo della musica antica et della moderna , de 1581, Vincenzo Galilei propõe regressar à tragédia grega porque só as composições monódicas poderiam ser suscetíveis de expressar os sentimentos de um texto com verosimilhança.
Nas décadas entre 1570 e 1590 os músicos e os poetas ca Camerata Bardi põem em prática o que acreditam ser um regresso às influências antigas, reduzindo as peças polifónicas e inserindo-as em intermédios cómicos.
Giovanni Bardi é obrigado a sair de Florença em 1592 e a sua tertúlia muda-se para a casa de outro mecenas: Jacopo Corsi (1561-1602). Foi aí que a «Dafne» de Peri e de Rinuccini  terá sido representada por três vezes. Realizada naquilo que designam por stile rappresentativo, que mais não era do que uma declamação cantada, esta obra depressa fez escola: em fevereiro de 1600, Cavalieri apresenta em Roma a sua «Rappresentazione di anima et di corpo», que costuma ser considerada o primeiro oratório da história da música.
Baseado num libreto de Agostino Manni esta obra terá sido estreada na Igreja de Santa maria della Valicella e apresenta diversos personagens: a Alma, o Corpo, a Inteligência, a Sabedoria, o Tempo, o Prazer, o Anjo da Guarda, a Vida do Mundo, o Mundo, a Alma Bem Aventurada, a Alma Condenada e o Eco.
Tratam-se, pois, de personagens abstratos ilustrativos de um objetivo moral de acordo com uma espiritualidade simples e aberta. A tal ponto que uma encenação do final dos anos 70 do século XX em Heidelberga apresentava as forças do mal vestidas com uniformes SS.
Ela começa com um cântico de louvor a deus na forma de um madrigal. Segue-se um longo prólogo falado durante o qual dois jovens discutem quanto os mortais vivem mergulhados na ilusão.
Os três atos deste oratório, que dura quase hora e meia são alegorias ainda muito aproximadas ás representações medievais.
No primeiro ato o Tempo comenta a mutabilidade das coisas humanas. A Inteligência lembra como o espírito humano nunca está satisfeito. E o ato conclui-se com o coro a lembrar que só o céu nos dá forças para ultrapassar os obstáculos que nos metem sempre em perigo.
No segundo ato temos o conflito entre o Mundo e a Sabedoria, o Prazer a seduzir o Corpo mas com a Alma a intrometer-se para o reorientar para os supostos verdadeiros deleites: os da vida celestial.
E o ato III corresponde à contemplação do que acontece com a Alma depois da morte.
Alguns meses depois, a «Euridice» de Peri é representada primeiro, mesmo que editada depois da de Giulio Caccini, composta e impressa em 1601, baseada no mesmo libreto.

BANDA SONORA: ADRIANA - Sem Fazer Planos - Ao vivo

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

POLÍTICA: O "milagre" das exportações


As televisões e os jornais afetos ao Governo apressam-se a divulgar excelentes notícias sobre as exportações, que tenderão a minimizar a crise em que estamos atolados.
No «Expresso», porém, o jornalista João Garcia esclarecia há dias em que consistia esse bom resultado com as exportações, que acabam por constituir mais uma trágica  mistificação: 9% da subida registada nas exportações do primeiro semestre deste ano foram conseguidos pelo disparo na venda de ouro para o estrangeiro. Nada de que nos orgulhemos, pois não foi ouro extraído de minas, mas dos cofres de quem o detinha. Vendemos ouro em segunda mão: 382 milhões de euros, mais 84% do que no primeiro semestre de 2011.
Foram adornos, comprados ou herdados, que os dias difíceis obrigaram a vender. Foi um ´péssimo negócio para quem a ele recorreu, pois a grama de ouro foi vendida em regra a 25 euros quando nas ourivesarias era comprado a 42, de acordo com a cotação em bolsa.
Parte do milagre das exportações foi possível porque alguns ficaram bem mais pobres!

FILME: «Apollonide - Memórias de Um Bordel» de Bertrand Bonello (2011)



Num filme como «L’Appollonide» estamos perante um dilema quanto aos seus efeitos nos espectadores. Será que lhe cabe apenas a função de satisfazer uma inconfessável curiosidade a respeito do mundo singular dos bordéis parisienses na viragem do século XIX para o século XX? Ou comporta em si uma outra ambição para a qual se poderá ajuizá-lo de melhor qualidade do que parece à primeira vista, desculpando-se-lhe até um certo tédio inerente à sua visão?
Se o tema poderia suscitar um erotismo, que predispusesse a abordagem para a primeira daquelas possibilidades, a verdade é que ele está quase ausente por muito que a nudez das atrizes se explicite com frequência no ecrã. Acaba por prevalecer uma cuidada reprodução do ambiente e do guarda-roupa da época sem esquecer as referências ao ambiente cultural  em que esses espaços até serviam de motivo de inspiração aos pintores do impressionismo.
Mas a sexualidade é aqui sempre fonte de desprazer: uma das prostitutas chega a dizer que, tão só dali se conseguisse libertar, e nunca mais faria amor na vida. Porque o lupanar aonde a aristocracia e a alta burguesia busca prazer mantém todas aquelas mulheres acorrentadas a um quotidiano asfixiante donde qualquer possibilidade de satisfação está excluída. Até porque todas elas estão sujeitas às dividas contraídas junto da «madame» e que jamais se conseguem ressarcir por muitos clientes, que se recebam.
Há também uma segregação óbvia das classes: todas as raparigas provém dos estratos sociais mais desfavorecidos da época e têm por única função darem satisfação aos muitos fantasmas masculinos, que por ali buscam realização. Estamos, porém, longe da perversidade irónica de um Buñuel, que tratava desse imaginário masculino com uma subtileza, que aqui se revela tão só demonstrativa. Nomeadamente das  doenças venéreas ou das gravidezes passíveis de as expulsar dali, ou pior ainda, as agressões tendentes a desfigurá-las. É assim que Madeleine, a Judia, acabará convertida na «Mulher que Ri» para gáudio de clientes mais «exigentes», que se excitam com a utilização do corpo do que designam como «monstro».
Se a sociedade à volta não fica excluída da intriga (o caso Dreyfus, a inauguração do metro) quase todas as cenas se cingem ao espaço fechado do bordel, só surgindo como breve momento de liberdade o passeio delas a um parque.
A viragem do século irá, porém, acabar com este tipo de instituições, quando os senhorios passam a exigir rendas absurdas e o poder político se alheia da sua sobrevivência, já que até está mais interessado em passar por defensor de uma forma hipócrita de moralidade pública. O que obriga as prostitutas a irem para a rua aonde as condições de sobrevivência apenas pioram, como se conclui na cena final em que se cruzam as cenas do passado com as do presente.
Em suma, embora não se tratando de um filme propriamente radical na defesa desse pressuposto, «L’Appollonide» acaba por constituir uma denúncia da violência exercida sobre as mulheres para exclusiva satisfação dos prazeres masculinos… sem escamotear as ambiguidades para que pode ser arrastado.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

POLÍTICA: O novo inimigo da democracia


No editorial do «Nouvel Observateur» da semana transata o respetivo diretor, Laurent Joffrin, comenta a condenação de três das cantoras do grupo punk Pussy Riot e aborda uma questão pertinente nos tempos que correm: começam a existir demasiados países aonde existem aparentes instituições democráticas, mas que escondem uma realidade ditatorial traduzida em sérios entraves à liberdade de imprensa, de expressão ou, mesmo, de atividade política.
Os exemplos são muitos e vão da Rússia de Poutine à Turquia de Erdogan, sem esquecer Singapura - que Passos Coelho já revelou admirar! - ou os países do Magreb saídos das supostas Primaveras árabes.
Joffrin designa esses regimes como «democraturas», já que contém uma componente de democracia e outra de ditadura.
Escreve ele: considerados geralmente como regimes de transição para a democracia, as democraturas poderão vir a instalar-se duradouramente na paisagem internacional. Baseadas na economia de mercado não sofrem as taras das economias inteiramente coletivizadas; praticando uma repressão cruel e restrita escapam à rejeição universal a que se sujeitam as ditaduras tradicionais como as da Síria ou da Coreia do Norte; alcançando grandes sucessos tecnológicos e económicos falam agora de igual para igual com as antigas democracias acossadas pela crise financeira e pela estagnação.
Eficazes, voluntaristas, financeiramente prósperas, graças ao seu mercantilismo, baseadas em valores ao mesmo tempo populistas e conservadores, podem oferecer às nossas democracias uma alternativa perigosa e credível.
Até mesmo nas democracias elas têm os seus defensores. Os capitalistas já veem nelas um eldorado sob controle favorável aos investimentos estrangeiros; os conservadores são seduzidos pela estabilidade política e pelo seu apelo aos valores tradicionais.
Embora o não explicite o advento de forças de extrema-direita um pouco por toda a Europa já comporta esta atração pelas democraturas, porquanto assentam na base de apoio a esse tipo de regimes musculados em que qualquer irreverência mais perigosa recebe uma punição semelhante à das cantoras russas.
É por isso que a esquerda tem de enfrentar sem tibiezas esta atração dos eleitorados confusos por formas de populismo conducentes a este tipo de solução. Conclui Joffrin: longe de serem dominados pela guerra contra o terrorismo, pela luta contra o islamismo ou pelo choque de civilizações, os anos vindouros poderão ser os de confronto cada vez mais tenso entre democracias e democraturas, substituindo a antiga guerra fria entre as democracias e o comunismo. Por esta razão a reação mole dos governos europeus face às iniquidades poutinianas não revela apenas uma enorme cobardia. Traduz sobretudo uma cegueira estratégica.

POLÍTICA: O boomerang que acertou em Vítor Gaspar


No «Expresso» de sábado transato, Miguel Sousa Tavares continua a emitir opiniões ainda tidas por minoritárias perante uma plêiade de comentadores enfeudados às doutrinas neoliberais, mas cada vez mais presentes em quem não se aceita como corifeu de uma realidade insuportável.
Não se tratando de nenhum perigoso marxista-leninista não deixa de ser curiosa a forma como ele descreve a realidade política atual: o processo ideológico de desforra do capital contra o trabalho, conhecido por ajustamento da economia portuguesa, e que consiste fundamentalmente na promoção deliberada do desemprego e na sua desregulação social como forma de embaratecimento do custo do trabalho, não é afinal suficiente e não produziu os efeitos desejados.
Os resultados estão, infelizmente, à vista: longe de nos termos tornado mais competitivos, tornámo-nos 10% menos competitivos em termos de custos sociais do trabalho.
Temos, pois, um mistério singular: as equações económicas no papel de acordo com a visão primária dos gurus de Chicago e de Stanford pareciam matematicamente tão certinhas e dão afinal resultados tão contrários ao expectável?
Acusa Miguel Sousa Tavares: mais um mistério criado por esta brilhante geração de economistas e de ideólogos da economia, que nos trouxeram até onde estamos. E, se eles não sabem e não conseguem explicar onde está a origem do problema, sabem qual é a solução: baixar ainda mais os salários e deixar crescer ainda mais o número de desempregados, como forma de pressionar em baixa o valor do trabalho contratado.
Vemos, assim, a persistência no erro, a crença insensata em como há que prosseguir na mesma via de embater estupidamente contra a realidade dos factos na esperança de a ver, enfim, coadunar-se com as promessas eleitorais com que enganaram o incauto eleitorado.
Conclui Miguel Sousa Tavares: quando eu estudei economia (…) Keynes ou J.F. Galbraith explicavam que uma economia com uma taxa de desemprego de 20% era necessariamente uma economia falhada de um país falhado. Hoje dizem-nos que é uma economia em processo de ajustamento…
***
Na mesma edição do «Expresso», Cristina Figueiredo recorda como, há um ano atrás, Vítor Gaspar denegrira habilidosamente a herança de José Sócrates e agora vê o feitiço virar-se contra o feiticeiro:
Três mil milhões de euros de derrapagem orçamental, um défice que, no final do ano, deve ficar bem além dos 5%. Qual boomerang, o «desvio colossal» de há um ano volta ao remetente…
***
Embora o texto em si não tenha grande novidade - a não ser pelos palavrões que nele se inserem - o libelo de Juan José Millas publicado no «El Pais» só demonstra como vai crescendo a frente de intelectuais decididos a participarem no esforço de cidadania de combate ao capital financeiro.
Ora as lutas contra a injustiça começam por ser quase sempre a dos intelectuais apostados em a denunciarem.
Diz o escritor espanhol: a economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico. Precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado.
A comparação mais exata do texto de Millás é essa entre os especuladores financeiros e os terroristas. E entre ambos os mais letais não serão propriamente os seguidores dos autores dos atentados de 11 de Setembro: se formos a avaliar a quantidade de vítimas dos atos de uns e de outros, facilmente concluímos não haver comparação entre os milhares que uns mataram nos seus voos suicidas às Torres Gémeas com os milhões, que morrem de desespero, de fome, de miséria, de impossibilidade em cumprirem os seus mais legítimos sonhos enquanto seres humanos.
Saddam ou Bin Laden eram tenebrosos, mas os donos de Wall Street ou da City londrina não o são menos… e têm entre nós fidelíssimos discípulos...


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

FILME: ««Millenium 3: A Rainha no Palácio das Correntes de Ar» de Daniel Alfredson



Hollywood brinda-nos amiúde com tanta porcaria, que acedermos a um filme honesto de origem sueca baseado na trilogia de Stieg Larsson constitui alternativa aliciante quanto mais não seja pela qualidade de entretenimento garantida. Até porque os maus são aqui gente aparentemente impoluta e situada no topo da pirâmide social, contrariados por jornalistas corajosos, hackers habilidosos e médicos interessados pelos seus pacientes. E ver assim invertida a lógica ideológica com que somos constantemente bombardeados traz alguma satisfação...
Ao princípio não é fácil compreender toda a trama até porque o segundo episódio da série já estava distante da memória. Mas depois os acontecimentos encadeiam-se e começam a fazer sentido. Vem então ao de cima a tal Suécia, que também os romances de Mankell evocam: a desse lado sombrio, responsável pela morte de Olof Palme hoje provavelmente comprometido na conspiração para entregar Julian Assange aos tribunais americanos e calar de vez a incómoda voz do criador do Wikileaks.
Nesse sentido a Suécia perdeu, á conta dos sus romancistas, aquela imagem idílica tão propagada em tempos à conta do seu Estado Social e do apoio aos movimentos políticos mais progressistas sos anos 60 e 70.
Porque Larsson desapareceu antes de aprofundar as aventuras das suas personagens - que projetava explorar em mais sete romances - existem fragilidades de argumento, que poderiam não o ser se as entendêssemos num contexto mais alargado - por exemplo quais os objetivos pretendidos pela Seção criada na época da fuga do desertor soviético Zalachenko e o seu congelamento tão só afastado o governo de direita a cuja sombra se formara. No que seria tão embaraçosa a sua atividade para justificar o regresso dos seus agentes já reformados?
Ou porque é que Niedermann, meio-irmão de Liabeth Salander, permaneceria tão focalizado na sua morte sem se lhe adivinharem objetivos mais ideológicos.
A realização de Alfredson não é isenta de reparos por deixar pontas soltas aqui e acolá, que não chegam a ser utilizadas. Mas a história não perde credibilidade e vê-se com agrado.

FILME: «A Árvore da Vida» de Terrence Mallick (2011)



Há uns quarenta anos pertenci à geração, que fez grandes debates filosóficos em torno do célebre paralelepípedo do «2001, Odisseia no Espaço».
Foi no tempo em que também toda a argumentação destinada a manter inquestionada a fé divina se esboroou e deu ensejo ao ateísmo subsequente de muitos de nós.
Se por essa altura tivesse aparecido este filme de Terrence Mallick a ânsia de termos «conversas importantes» seria bem alimentada por este tratamento místico das dúvidas existenciais de um homem adulto, que olha para trás e ainda não conseguiu resolver os dilemas éticos relativos à relação freudiana (de amor) com a mãe e (de ódio assassino) com o pai.
O filme é bastante bonito, mas até Sean Penn confessou deceção perante um tratamento tão incomum de um argumento, que tanto o havia seduzido, mas incapaz de garantir um fio condutor passível de o tornar mais compreensível. É que somos brindados com imagens sobre a criação do universo e da Terra (e o seu fim), com dinossauros de permeio e Deus a ser interrogado na sua ausência, no alheamento à sorte dos seus crentes, mas sem Mallick arriscar uma interpretação convencional de toda a sua idiossincrasia.
Verdade que para um católico o filme representará a exacerbação das maravilhas da Criação Divina, mas o ateu também não sai mal servido com as dúvidas existenciais de Jack O’Brien - esse Job testado, a exemplo do seu modelo bíblico, quanto à consistência da sua crença. Até porque o filme é também sobre a sua perda de inocência à medida que os anos passam e toda a magia infantil se esvai ao constatar a dificuldade de relacionamento entre os adultos. Sobretudo porque o odiado pai compensa em prepotência toda a frustração por ter falhado rotundamente nos seus projetos de vida, quer como compositor, quer como inventor.
A nostalgia desses longínquos anos 50 numa pequena cidade texana dá lugar à triste consciência de sermos ínfimos e irrelevantes no seio de um universo grandioso e de leis inacessíveis.
O final com o reencontro de Jack com os pais, os irmãos e os amigos num Além intemporal, aposta na transcendente crença da imortalidade da Alma, mas pode tratar-se apenas de uma criação idealizada da sua mente solitária, ansiosa por uma solução paliativa para todas as irresolúveis inquietações...

domingo, 26 de agosto de 2012

ESCRITOR: José Rodrigues Miguéis



É um desafio pessoal para os próximos meses e com reflexos nestas páginas: abordar a obra de um dos escritores portugueses do século XX mais injustamente esquecidos - José Rodrigues Miguéis.
Nascido em 1901, filho de um porteiro e de uma costureira de Alfama, desperta bem cedo para os ideais republicanos por influência do progenitor e pelos acontecimentos que marcam os seus verdes anos: o regicídio quando tem 7 anos, a implantação da República quando conta 9 e a 1ª Grande Guerra quando já está matriculado no Liceu Camões.
É das trincheiras da Flandres, que regressa incólume o irmão mais velho, que morrerá de súbita peritonite nos seus braços, quando só tinha 23 anos.
O jovem José Rodrigues Miguéis estuda então Direito ao mesmo tempo que passa a escrever e a desenhar para o «Diário de Notícias» e o «Ilustração Portuguesa». Já então se revelam os seus talentos multidisciplinares: pintura, canto, escrita…
Aos 22 anos tem uma rubrica regular no «República» - «Poeira da Rua» - e, no ano seguinte, publica o seu conto «O Milagre de Joane» na «Seara Nova».
Na época ele está bastante identificado com os valores do grupo de intelectuais, que anima esta última revista, embora o golpe do 28 de Maio o vá deles dissociar-se por diferir na forma de combater a nova ditadura militar. António Sérgio chega a apodá-lo de «bolchevique».
Insatisfeito com a situação no país consegue uma bolsa para a Bélgica para aí se licenciar em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Bruxelas.
Regressado a Lisboa em 1932 mantém a colaboração com a «República» e ganha um importante prémio literário com «Páscoa feliz».
Mas Lisboa torna-se-lhe um espaço claustrofóbico, tanto mais que a polícia política o vigia por o saber próximo do Partido Comunista.
Na iminência de ver-se proibido de publicar o que quer que fosse, parte para os EUA aonde tem à espera Camila com quem se irá casar.
Os primeiros tempos em Nova Iorque são, porém, difíceis: não consegue emprego e limita-se a militar no Partido Comunista dos EUA, integrando as fileiras dos principais apoiantes dos Republicanos espanhóis, chegando a discursar para vinte mil pessoas num comício do Madison Square Garden.
Em 1942 naturaliza-se norte-americano e torna-se responsável pela edição brasileira das Seleções do Reader’s Digest. Mas, esse que será o seu emprego mais estável, é interrompido, quando quase morre devido a uma inflamação do cerebelo. Na precisa altura em que é editado no Brasil o seu volume de contos «Onde a Noite se Acaba».
A doença decide-o, porém, a apostar na carreira de escritor, que antevê possível em Portugal aonde regressa por pouco tempo, tanto mais que logo é preso. Vale-lhe a sua nova nacionalidade para ser libertado  com ordem de expulsão.
Regressado ao outro lado do Atlântico e, extremamente saudoso da cidade natal, escreve «Saudades para Dona Genciana» (1956) em que a apresenta como espaço mítico, mas também de grande solidão e angústia.
Nova tentativa de regresso a Portugal só lhe servirá para receber o Prémio Camilo Castelo Branco para o seu «Leah e outras Histórias», que ficará envolto em polémica, porque os literatos do regime apressam-se a condenar que se entregue tal galardão a um escritor ...estrangeiro.
Regressado de vez à sua pátria de adoção sente cada vez mais Portugal como o da sua infância e adolescência, dissociando-se do que ele se tornará na década de 60 e de inícios de 70.
O 25 de Abril entusiasma-o, quando contava já na sua bibliografia com livros tão determinantes como o foram «O Milagre Segundo Salomé» e «Escola do Paraíso». Mas depressa lhe desagrada o clima de caos social subsequente à Revolução, sentindo-se demasiado cansado e doente para intervir  como gostaria. É que, morrendo em 1980, ele sentia-se um jovem aprisionado num corpo que, entretanto envelhecera…

LIVRO: «Os Dias de Davanzati» de Hector Abad Faciolince



Um dos livros aconselhados nos últimos meses por Pedro Vieira e Catarina Homem Marques do «Ah Literatura! no Canal Q foi este «Os Dias de Davanzati» de Hector Abad Faciolince, autor colombiano bastante interessante, mesmo se completamente distanciado do realismo mágico do seu compatriota Gabriel Garcia Marquez.
Neste muito interessante romance, temos um narrador a resgatar do lixo as páginas para ali expulsas pelo seu vizinho literato, um escritor falhado, ciente da sua escassa qualidade literária, muito embora incapaz de a poder interromper.
Existem assim duas histórias em paralelo: a que Davandazi escreve e vai deitando fora e a da busca incessante, quase obsessiva desse narrador apostado em impedir tais folhas de serem definitivamente perdidas num qualquer aterro.
Muito embora a crítica tenha preferido o anterior romance lançado entre nós - Somos o Esquecimento que Seremos, merecedor de um autêntico culto de quem contactara com o escritor nas Correntes de Escrita - também reconheceu o valor a esta obra cujo problema maior terá sido a de não cuidar tanto quanto se gostaria do narrador, sobre afinal pouco se fica a saber para além do seu motivo de interesse.