quarta-feira, 31 de julho de 2013

POLÍTICA: um perigo chamado rui rio

A entrevista de rui rio à RTP demonstrou que o cavaquismo já está a preparar o funeral a passos coelho à frente do PSD e do governo agora recauchutado.
Político astuto, que conseguiu manter-se à frente da autarquia portuense, apesar de contar contra si alguns dos poderes mais influentes da cidade a começar pelo presidente do seu clube mais representativo e a culminar na classe cultural, que sempre execrou a sua preferência por corridas de carros antigos em detrimento dos bem necessários apoios ao teatro e às artes em geral, rui rio teve a plena noção de qual seria o momento certo para desferir dois tiros mortais na atual direção laranja.
Ciente de que menezes perderá as eleições de setembro seja para moreira, seja para Pizarro, ele aposta em vir a ser recordado pelos militantes laranjas da cidade como o “sábio” que bem os avisara da injustificada candidatura do seu rival de Gaia.
Mas ele não se ficou por aí: sabendo que maria luís albuquerque já é a bomba relógio pronta a detonar dentro do periclitante governo, rio coloca-se à parte, salvaguardando-se dos efeitos dos estilhaços, e preparando-se para surgir como o redentor capaz de salvar o partido laranja do desastre anunciado para as eleições seguintes.
Esse será o perigo com que o Partido Socialista deverá contar. Porque não existirão escrúpulos por parte da direita a anunciar um novo começo com direção diferente da que então será defenestrada. E, perante uma liderança incapaz de convencer os eleitores da bondade das suas propostas, os socialistas bem poderão arriscar-se a ver muitos dos que estariam agora dispostos a votar em si, só porque os dois anos de passos coelho têm sido infernais, caírem em novo canto de sereia com rio abençoado por cavaco a afiambrar-se a novo ciclo de políticas favoráveis aos suspeitos do costume.


LIVRO: «Trilogia Suja de Havana» de Pedro Juan Gutierrez (5)

Na sua análise semanal na TVI24, o prof. Augusto Santos Silva disse esta noite que o regime comunista chinês cumpriu o sonho impossível de qualquer capitalista que se preze: salários baixos, proibição de greves, inexistência de sindicatos.
Tendo em conta o número de ex-maoístas, que foram parar aos partidos da direita ocidental, não admira encontrarem-se neles as mesmas ideias engendradas na mente de Deng Xiaoping a coberto da inevitável austeridade.
Mas nenhum dos falhanços dos regimes autoproclamados como comunistas teve paralelo com o de Cuba. Ali, apesar de uma sociedade tão arruinada quanto os seus prédios ou as suas «banheiras» saídas das fábricas de Detroit nos anos 50, ainda se encontram muitas pessoas a defenderem os méritos do regime e a justificarem os aspetos negativos com o alibi do conhecido bloqueio norte-americano.
Não é o caso de Pedro Juan Gutierrez, cuja dissidência o conota com o carácter cínico de um boémio niilista, por muito contraditório que soe essa mistura definidora.
No terceiro livro da «Trilogia» ele mantém a pusilanimidade anterior: qual Oblomov não lhe apetece mexer um músculo muito embora o force em contrário a necessidade de arranjar algum expediente para assegurar a sobrevivência: Não tenho nada que fazer. Mais: não tenho a mais leve ideia do que hei-de fazer hoje, amanhã, daqui a um mês, a um ano ou a um século. Talvez seja o melhor para não me angustiar nem me considerar perdido. Não sei o que vou fazer para sobreviver, mas não importa. Vivo como um cometa, arrastado pelo vento e sinto-me bem. Só que muitas vezes nem sequer o vento sopra. (Pág. 263)
Mas, à sua volta não parecem encontrar-se aqueles comunistas empenhados, que costumavam suportar sem sinal  de fraqueza os intermináveis discursos de Fidel. Se não são contestatários confessos das políticas dos seus dirigentes, os compatriotas descritos por Pedro Juan adotam um estilo de vida, que se ajusta ao célebre provérbio: «Cada um por si e deus contra todos!
Aqui toda a gente espera. Um dia de cada vez. Ninguém sabe do que está à espera. Os dias passam. E o cérebro fica embotado. O que é um bem. Ter o cérebro embotado é bom para não pensar. Às vezes penso de mais e entro em desespero. (pág. 237).
É numa dessas alturas, que Pedro Juan aposta no mister de gigolo junto de velhas turistas, que se deslocam a Cuba para, a troco de alguns dólares, viverem a ilusão de um romance regado a muito álcool e com sexo intenso à mistura.
Durante umas semanas tudo corre bem e o dinheiro sobra para o rum, para a droga e para almoçar e jantar em condições.
Só que essa forma relativamente agradável de ganhar a vida tem como desiderato a condenação a um período de cárcere. Experiência assaz desagradável: No princípio foi terrível. Tive um ataque de claustrofobia e descontrolei-me. Quando me vi encarcerado a raiva dentro de mim aumentou e comecei a gritar e a deitar espuma pela boca. Esmurrei dois guardas que tentaram amarrar-me ali mesmo e me deram uma coça que me deixou inconsciente. Quando voltei a mim foi pior: tinham-me fechado numa jaula. (pág. 221)
Trata-se de um castigo violento para um misógino, que como tal se proclama ao longo dos três livros da trilogia. Para ele a mulher não passa de um objeto de prazer, e eventual propiciadora de dinheiro fácil (quando não tem escrúpulos em servir de proxeneta a uma amante de ocasião!) embora o envelhecimento vá dificultando-lhe a satisfação da libido: A falta de mulher põe-me neurótico. Mas uma mulher torpe e bruta permanentemente a meu lado é irritante e angustia-me. E todas querem o mesmo: começam por fornicar alegremente, bebem rum e riem de tudo o que uma pessoa diz, muito ternas. Depois desejam isso tudo mas além disso exigem que uma pessoa se esmifre todos os dias para arranjar dinheiro e comida para ela e para três ou quatro filhos, paridos de três ou quatro maridos, que passaram por cima delas e seguiram em frente. (pág. 283)


terça-feira, 30 de julho de 2013

POLÍTICA: o derradeiro fluxo antes da seca fatal!

Que contente estava hoje Telmo Correia quando, no debate da moção de confiança, se virou para a bancada do Partido Socialista e a desafiou a aceitar a “realidade” de que se ufanara durante a sua intervenção: o (des)governo está tão coeso que eleições legislativas só em 2015!
Provavelmente o deputado do partido de portas estava tão convencido intimamente dessa afirmação, quanto maria luís albuquerque da sua identificação com o lema da Rádio Moscovo antes do 25 de abril, quando falava na comissão parlamentar: de que estava a falar verdade! Mesmo que quase todos quanto os ouvem estejam convencidos do contrário!
Ao deslocar-se para a Manta Rota para passar férias a coberto de um forte cordão policial, passos coelho também irá iludido quanto a ter conseguido salvar os dedos desta recente crise, que lhe terá levado essa joia inestimável, que se chamava vítor gaspar! E até poderá crer que machete e pires de lima equivalem às mais vistosas pérolas da Tiffany’s! Azar dele: a realidade continua a impor-se com incontornável falta de complacência para com os primeiros-ministros de direita, que estão à frente dos destinos de Portugal, da Espanha, da Grécia ou de Chipre! E, muito em breve, ela impor-se-á às convicções voluntaristas dos telmos, das mariasluís e dos passoscoelhos. Como escreve João Jesus Caetano na edição do «Diário Económico» o otimismo sobre um novo ciclo desvanecerá entre as nuvens de Outubro, quando for apresentado o Orçamento do Estado para 2014. Nessa altura, o CDS virá dizer que a sua visão política era outra mas que Portugal é um protetorado.
É claro que, a exemplo de Mário Soares, desejaria ver a liderança socialista a adotar um discurso mais determinado e sem tanto pedido de desculpa. Mas nem uma inábil capacidade para convencer o eleitorado de alternativa consistente, capaz de devolver esperança a quem entretanto a perdeu, facilitará o percurso da coligação agora confiante de ter ganho um último fôlego!
Se fosse culta lembrar-se-ia do final de «A Um Deus Desconhecido» do Steinbeck: antes morrer, um rio costuma ter um último e enganador fluxo final. Depois seca de vez...


POLÍTICA: a tatear no caos!

Tenho aqui referido com alguma frequência os artigos de opinião publicados por Fernando Sobral no «Jornal de Negócios».
Embora nem sempre de acordo com as suas abordagens dos acontecimentos, devo reconhecer-lhes a constante profundidade da reflexão e a erudição em que subjazem os seus argumentos.
No texto «Um país tateando no caos», publicado na transata sexta-feira, ele reconhece o estado a que a coligação PSD/CDS conduziu o país: É hoje visível o que Vítor Gaspar, Passos Coelho e a troika fizeram a Portugal: espoliaram os cidadãos de rendimentos e de certezas, espalharam o medo, aniquilaram o consumo e a sobrevivência da teia de pequenas empresas familiares que eram a forma de sobrevivência de muitos. Em nome da dívida e do défice e de um sonho: tornar este um país de exportações com base em salários miseráveis.
A exemplo de Leonel Moura que, noutro artigo já aqui referido, também revela um profundo pessimismo quanto á viabilidade de sairmos de um ciclo de pauperização, Sobral também olha para o perfil sociológico da população portuguesa e conclui: quando se transformou os cidadãos em puros consumidores (de gadgets, de partidos) e se reconduziu todo o discurso social à lógica económica (cada pessoa funciona hoje como uma empresa, tem de ter sucesso ou lucro), a política perdeu a noção da realidade. A destruição, pela austeridade e pela globalização, da classe média (pilar da democracia) segue essa lógica. Todos têm a noção que este sistema baseado no consumo infinito acabará por implodir, porque não há recursos naturais que o sustentem indefinidamente.
Estamos assim num tempo de viragem em que a esquerda terá o dever de atrair a si essas vastas camadas outrora consideradas de classe média e agora proletarizadas, senão mesmo atiradas sem cerimónias para as franjas do lúmpen sem abrigo nem emprego. E dissocia-las da miragem com que o capitalismo as iludiu de uma sociedade de consumo sem travões. O futuro que se segue terá, inevitavelmente, menos centros comerciais e dispensará as praias da Riviera Maya. Mas poderá  sustentabilizar-se numa distribuição mais equitativa dos bens produzidos a começar pelos empregos disponíveis...


segunda-feira, 29 de julho de 2013

POLÍTICA: perdição nacional?

Habitual colunista no «Jornal de Negócios» à sexta-feira e quase sempre conotado com as posições do Partido Socialista (pelo menos enquanto José Sócrates foi primeiro-ministro), o artista plástico Leonel Moura tem evidenciado um crescente pessimismo durante estes dois anos em que muitos dos avanços verificados no Governo anterior acabaram sabotados por passos coelho e seus apaniguados. E sem a firmeza de uma indignação digna desse nome.
Na sua crónica mais recente ele alerta para a inquietante transformação em curso: A sociedade portuguesa está a mudar. Rapidamente. Não só nesse abrupto empobrecimento económico que dizima modos de vida, mas igualmente num outro tipo de empobrecimento, cultural e intelectual. Portugal está num processo de imbecilização geral.
Mais adiante ele concretiza em que fundamenta esses sinais de regressão: O regresso da mentalidade salazarenta e do seu modelo do português pobrezinho, honrado e temente a Deus. A quantidade de gente que aparece agora a exigir poupança, a criticar qualquer iniciativa que implique investimento ou simplesmente qualquer audácia, impressiona.
Hoje é uma boa notícia quem faça qualquer coisa banal com lixo, uns sapatos, uma mala, mas não quem exprima ambição e deseje conquistar o planeta com uma nova ideia ou produto. A visão mesquinha, pequenina e miserabilista invade a comunicação e as cabeças, afastando Portugal ainda mais do mundo.
O pessimismo de Leonel Moura leva-o a concluir: É assim que do governo de salvação nacional nos resignamos por estes dias ao governo da perdição nacional. Não é bonito de ver.
Embora reconheça fundamento para a visão deprimida de Leonel Moura sobre o atual estado das coisas, desejo sinceramente que esteja rotundamente enganado. E que, parafraseando Daniel Filipe, depois de tanto sofrimento, surja a tal janela aberta, vibrantemente iluminada.


IDEIAS: o homem lobo do homem

Ao contrário do que muitos pensam não foi Jean Jacques Rousseau o primeiro a imaginar um suposto «estado natural». Um sáculo antes da publicação do «Discurso Sobre as Ciências e as Artes», o inglês Thomas Hobbes antecipou o mesmo projeto em «Léviathan», mas numa perspetiva sem qualquer similitude com o paraíso original ou qualquer outra versão de uma idade do ouro.
Hobbes imagina um autêntico Inferno, com um estado permanente de guerra de todos contra todos. A vida do homem é então solitária, laboriosa, penosa, quase animalesca e breve.
Surge assim a célebre frase: o homem é o lobo do homem.
Por muito difícil que se conceba visão mais pessimista dos alvores da Humanidade, Hobbes reivindica-a em nome da observação da Natureza a que se dedicou. Vigora a lei do mais forte e o medo permanente, que estará na origem da emergência do conceito da Igualdade.
De facto será por a Natureza os colocar num estado de igualdade perante os objetos dos seus desejos, que os homens tendem para o confronto: Dessa igualdade de aptidões decorre a igualdade na esperança de atingir os seus fins. Eis, porque, se desejam exatamente a mesma coisa cujo usufruto não pode ser partilhado, dois homens tornar-se-ão inevitavelmente inimigos.
Assim, quer Hobbes, quer Rousseau consideram existir igualdade no «estado natural». Mas, enquanto o autor do «Contrato Social» valoriza-a ao ponto de a transformar num ideal político, Hobbes considera-a a origem de todos os males para todos os homens condenados a viverem subjugados pelos seus desejos. Em «Léviathan» eles manifestarão o cansaço por esse estado de guerra permanente e aceitarão de bom grado colocarem-se sob a autoridade de uma terceira entidade: o poder do Estado.
Temos assim um homem bom por natureza em Rousseau e inevitavelmente mau em Hobbes em duas visões antropológicas completamente opostas. Para o primeiro a sociedade é um contrassenso, para o segundo uma necessidade imperiosa...


LIVRO: «A Princesa de Clèves» de Madame Lafayette

Há muito tempo que não me lembrava do romance escrito por Madame  Lafayette, quando a Revolução Francesa estava a um século de distância. Mas a nova edição da Dom Quixote veio renovar a oportunidade de conhecer aquele que é tido com um dos primeiros romances psicológicos da literatura mundial. Porque a história é a de uma grande carga de tensão sexual entre a protagonista e o belo Duque de Némours por quem está profundamente enamorada.
O problema é que a Princesa está casada com um homem mais velho, também ele apaixonado por ela, mesmo que não correspondido. E, por uma questão de lealdade não quererá traí-lo por muitas intrigas e mexericos desenvolvidos à sua volta na corte parisiense.
Ao longo do romance a Princesa e Némours encontrar-se-ão por diversas vezes, e quase sempre por acaso, e nunca chegando às vias de facto, que desejariam. Mais ainda, quando enviúva e o obstáculo à concretização do desejo é anulado, o óbvio não acontece: em vez de esperar pelo conveniente período de nojo para se lançar nos braços do duque, a Princesa decide entrar num convento. Acabando por ele esquecida…
Há quarenta anos, quando os rapazes já liam Wilhelm Reich com a expectativa da prometida libertinagem futura, ainda muitas das suas colegas de liceu andavam a contas com este tratado sobre a fidelidade mantendo o sonho de amores platónicos vividos até às últimas consequências. 
Passadas estas décadas nem a libertação sexual à moda de Reich se concretizou, nem perdurou a lógica dos amores cândidos então ainda tão influenciados pela força ideológica de uma Igreja tão avessa a modernidade anunciada no Concílio Vaticano II (ainda por retomar). È por isso que «A Princesa de Clèves» poderá ser apreciado por aquilo que verdadeiramente é: um romance clássico, que testemunha as idiossincrasias de uma época, nomeadamente no que à relação do feminino com o masculino diz respeito...


DOCUMENTÁRIOS: «Lula Gigante» de Yasuhiro Koyama e «Tubarões das profundezas» de Yoshi Yuki

Há poucos dias apareceu uma lula gigante nas águas de Sesimbra, repetindo um acontecimento comum em muitos dos mares do globo. Mas surpreendendo sempre que acontece por ilustrar a diversidade da fauna oceânica com tanto ainda por descobrir.
Daí o interesse dos documentários japoneses apresentados no canal ARTE durante o fim de semana e em que estiveram em foco as lulas gigantes e os tubarões, que povoam as grandes profundidades do globo.
«Lula Gigante» de Yasuhiro Koyama (2013) acompanha a expedição científica, que captou as primeiras imagens de uma lula gigante a movimentar-se nas profundezas do oceano Pacífico.
Data de há dez anos a colaboração entre o canal NHK com o Museu Científico Nacional no Japão para se procurar a forma de filmar essa misteriosa criatura, que foi objeto de tantas histórias no imaginário marítimo mundial.
Até se terem conseguido captar algumas fotografias em 1996 ainda não se verificara qualquer prova documental da sua existência. Agora o dr. Tsunemi Kubodera chefiou uma expedição a bordo de um submarino concebido expressamente para tal objetivo.
A cerca de 15 kms a leste da ilha de Chichi, no Pacífico Norte, a equipa de Kubodera conseguiu encontrar a mítica lula com cerca de 8 metros de envergadura ao fim de uma centena de mergulhos e de quatrocentos horas passadas dentro de água. Vista a 630 metros de profundidade as imagens aqui documentadas acompanham-na até aos 900.
Após terem conseguido filmar pela primeira vez a famosa lula no seu habitat natural, os biólogos marinhos  Yoshihiro Fujiwara e Sho Tanaka esforçaram-se por procurar outras espécies pouco conhecidas nas mesmas profundidades, como sucede com os tubarões dali característicos… É o tema do documentário «Tubarões das profundezas» de Yoshi Yuki (2013).

Para levarem a bom porto essa experiência inédita, os cientistas servem-se de um isco providencial: o cadáver de um jovem cachalote, que deu à costa numa praia japonesa há alguns anos atrás e, desde então, congelado.
Preso a um bloco de betão ele é imerso e cumpre o objetivo na perfeição. Nas semanas seguintes gigantescos tubarões de diversas espécies agitam-se à volta desse isco. E nos mergulhos sucessivos com os robôs submarinos encontram-se espécies de tubarões, que já existiam há 380 milhões de anos. Ou outros com formato tão singular, que merecem bem a designação de “monstros marinhos”- Ou ainda o gigantesco megamouth, só conhecido desde 1976 e com uma boca de um metro de largura. O encontro com este último espécime, grande glutão de camarões, constitui o ponto culminante da expedição.


POLÍTICA: A União Nacional estará no consciente ou no inconsciente de passos coelho?

Agora que passos coelho reincidiu na utilização do termo “união nacional” para perspetivar a ideia de continuidade do regime por ele circunstancialmente liderado, pode-se considerar que lhe caiu a máscara e revelou-se a sua verdadeira natureza: se não no consciente, alberga no subconsciente uma cultura salazarenta, que é típica de uma certa direita nacional, mais próxima dos modelos totalitários do século XX do que dos valores da democracia cristã pelos quais os mesmos estratos sociais procuraram conferir uma faceta mais civilizada ao mesmo objetivo de manter a exploração da maioria pela minoria detentora dos bens de produção e das respetivas rendas.
E a exemplo de salazar que, quando os ventos do pós-guerra o confrontaram com o anacronismo dos seus valores e instituições logo cuidou de esquecer os fundamentos ideológicos do Estado Novo entrando na lógica da sua salvação custasse o que custasse, passos coelho também vai dando sinais de ceder no acessório para manter o principal (o lugar de primeiro-ministro ainda determinante para exequibilizar os negócios em que, com as privatizações, está envolvido!).
Que interessa ter o Estado esbulhado de empresas rentáveis se, a curto prazo, passos e os seus amigos terão garantidos lugares nas Administrações dos grupos económicos de que estão a servir de testa-de-ferro para o assalto em curso?
Não admira que tenha dado a portas o penacho, que este desejava, ou se ilude os incautos com supostas mãos estendidas ao PS. Quanto mais tempo ficar, mais hipóteses terá de satisfazer os interesses de quem o tem por dócil marioneta do seu jogo de compra por baixo custo do que prometem vir a ser elevados lucros futuros!


domingo, 28 de julho de 2013

FILME: "Le Jour se lève" de Marcel Carné

FILME: «Le Jour se Lève» de Marcel Carné

Marcel Carné roda ”Le Jour se Lève” logo após ter conhecido um dos grandes sucessos da sua carreira de realizador de cinema, com “Quai des Brumes”, de que manteve não só muitos dos elementos da equipa técnica  e dos atores (entre os quais Jacques Prévert nos Diálogos, Alexandre Trauner na Cenografia, Maurice Jaubert na Banda Sonora e Jean Gabin como protagonista) mas também da temática envolvida: a fatalidade, que se abate sobre um homem comum.
No entanto o filme teve um acolhimento menos favorável, sendo visto como um mero sucedâneo. Só mais tarde, graças ao crítico André Bazin é que foi reconhecido como uma das principais obras-primas do cinema francês.
Carné, que viveu entre 1906 e 1996, ainda conheceu dois enormes sucessos, quer durante, quer logo após a Segunda Guerra Mundial: “Os Trovadores Malditos” (“Les Visiteurs du Soir”, 1942) e “Os Rapazes da Geral” (“Les Enfants du Paradis”, 1945). Posteriormente, apesar de tentar filmes de acordo com o gosto popular (“Les Tricheurs”, 1958), só com “Thérèse Raquin” (1953) voltará a conhecer um relativo sucesso.
“Le Jour se Lève” é, pois, um dos clássicos do seu autor, inspirando-se quer na estética do cinema mudo, quer da tradição alemã, a Kammerspiel, que Carné transpôs eficientemente para um ambiente francês: um drama depurado com um número muito limitado de cenários e ambientado num ambiente social modesto, que se conclui numa tragédia pressentida desde início.
Nos anos 30 ouve-se um tiro no último andar de um prédio isolado de um bairro popular. O operário François acaba de matar um homem. Acossado pela polícia e sem esperança de remissão, recusa render-se apesar dos apelos dos amigos.
Em flash back ele recordará os acontecimentos, que o conduziram a essa situação. O encontro com a florista Françoise por quem se enamora sem sucesso, já que ela é seduzida pelo insinuante Valentin, treinador de cães. O namoro sem entusiasmo com Clara, a assistente de Valentin. E as provocações deste, quando o vem procurar ao apartamento.
François acaba por se suicidar quando, ao nascer do dia, a polícia prepara o ataque final ao seu antro.
Se fosse uma peça musical, “Le Jour se Lève” evocaria um quarteto de cordas interpretado em tons muito baixos, já que Carné pedira aos atores, que emitissem os seus diálogos quase em sussurros. O que levou um crítico dessa época a publicar uma chalaça: «depois do cinema mudo e do cinema sonoro, temos o cinema balbuciado!».
A utilização de tempos distintos, ideia devida ao autor do argumento original (Jacques Viot), permite encadear o passado numa situação presente que contém em si a sua própria dinâmica fatal. Enquanto o passado recorre a frequentes elipses, de aberturas e esperanças, o presente decorre lento e inelutável em tempo quase real. E a ligação entre esses tempos é assegurada pela música funcional de Jaubert, que se escusa aqui aos ritmos vivos compostos para outros filmes de Carné.
Da tradição do kammerspiel deriva, igualmente, o cuidado cenográfico investido no quarto de François: o urso de peluche, as fotografias. Carné quis que esse quarto, aonde o protagonista espera o desiderato da história, fosse fechado dos quatro lados para acentuar essa sensação de claustrofobia durante a rodagem das cenas ali passadas.
Estreado em vésperas do conflito mundial, o filme seria proibido em França durante a Ocupação por estimular a desmoralização, mas passa nos ecrãs de todo o planeta, influenciando sobretudo os cineastas japoneses e suecos. “Kris”, o primeiro filme de Ingmar Bergman, é tido como um seu sucedâneo.


POLÍTICA: publicidade intensiva para mercadoria podre

É admirável o esforço feito pelas várias televisões para passarem a ideia de um novo ciclo na (des)governação! Até o habitualmente circunspecto António José Teixeira aceitou comparecer perante as câmaras da SIC para ajuizar de sem relevância as mentiras de maria luís albuquerque! Quem lhe terá encomendado um sermão tão pouco conforme com a seriedade exigível pela deontologia profissional? Sobretudo, quando são os morais sarmentos ou os marques mendes a considerarem fragilizada a recém-empossada sucessora de gaspar!
Mas as notícias vão acentuando a confirmação de um executivo em completa continuidade com o da primeira metade da legislatura no tipo de trapalhadas, que tanto assediaram miguel relvas até tombar no caixote merecido!
O que haverá a esperar nas próximas semanas sobre o percurso de um rui machete, quando se recuperam dos arquivos os seus desempenhos passados em comportamentos políticos mais do que suspeitos (como sucedeu, por exemplo, com o seu papel à frente de uma comissão parlamentar encarregada de, em pleno cavaquismo, branquear o criminoso oliveira e costa enquanto delinquente fiscal!)? O que iremos saber, em breve, sobre o desempenho de agostinho branquinho naquela empresa de que nunca ouvira falar, poucas semanas antes de nela vir a assumir funções de administrador? E que surpresas nos reservará o defenestrado álvaro santos pereira, quando começar a dar-se conta de como foi mera marioneta num teatro em que os titereiros eram gente pouco escrupulosa?
E o que esperar dos sucessivos deslizes retóricos de passos coelho, quando lhe dá para ir repetindo fórmulas colhidas do imaginário ideológico, que lhe vai na alma, como agora ocorreu com o termo “união nacional”?
Embora a banhos - se a meteorologia vier a ajudar mais do que até aqui - o país está fadado para semanas animadas, quando a campanha autárquica acelerar e, com ela, a confrontação dos caciques laranjas com a desafetação de um povo cada vez mais dissociado da sua requentada demagogia...


sábado, 27 de julho de 2013

FILMES: «When we were kings» de Leon Gast e «Ali» de Michael Mann

Em 1974 um audacioso organizador de combates de boxe, Don King, convence Mobutu a financiar e a acolher em Kinshasa aquele que será o primeiro «combate do século organizado em solo africano» e precedido de três dias de concertos com os grandes nomes de então da soul music: James Brown, B.B. King, etc.
Num dos topos do ringue estava o pugilista mais mediático do planeta, Mohamed Ali, então com 32 anos, e que fora privado do título de campeão do mundo por lhe terem retirado a licença entre 1967 e 1970 devido à recusa em combater no Vietname (Nunca nenhum vietcongue me chamou “preto”, justificara). No outro topo estava o detentor do título, George Foreman, então com 25 anos, com a fama de nunca ter conhecido a derrota até então.
É sobre esse combate de titãs, que trata o filme mais interessante a ser transmitido este fim de semana no canal ARTE (domingo 28 às 22.15).
When we were Kings ganhou o Óscar do melhor documentário em 1997 e constitui um testemunho valioso dessa época.
Vinte e três anos antes, Leon Gast, o realizador, chegara a Kinshasa para rodar um documentário sobre a componente musical do evento. Mas, entretanto, o combate teve de ser adiado durante cinco semanas para possibilitar a Foreman a recuperação de uma lesão. Gast irá então acumular duzentas horas de filme sobre os bastidores e a ambiência, que envolve o combate. Mas a produção fica sem dinheiro e o filme ficará durante mais de vinte anos na gaveta. Quando foi, enfim, montado, constituiu um testemunho impressionante sobre a imensa esperança de mudança, que Mohamed Ali personificara.
Antes desse documentário de referência, o mesmo canal apresenta o filme que Michael Mann rodou em 2002 sobre o pugilista, aqui personificado por Will Smith.
Recorda como, em 1964, ele ainda era Cassius Clay, tinha 22 anos e tornara-se o campeão do mundo de pesados, vencendo o consagrado Sonny Liston.
De um dia para o outro ele aproveita a visibilidade de tal sucesso para a colocar ao serviço da causa em que acredita: a do seu islamismo militante contra a opressão dos Brancos.
Recordemos que a América ainda não vivera o sobressalto cívico personificado por Martin Luther King e o racismo era sentido diariamente por quem possuía a cor errada.
Daí que uma boa parte da América vá execrá-lo, quando ele proclama a recusa em manter o nome por que era conhecido (e próprio de um escravo) substituindo-o por Mohamed Ali, mais conforme com a sua militância na «Nação do Islão», aonde se torna amigo de Malcolm X. Norman Mailer diria então que ele era o maior ego da América!
Ao contrário do documentário de Leon Gast, aonde testemunhamos o homem e a sua circunstância, o filme de Michael Mann vai focalizar-se na sua solidão e vulnerabilidade, esbatendo-lhe a faceta de quem tinha por divisa, quando combatia, que voava como uma borboleta e picava como uma abelha.
A banda sonora é, no entanto, uma das principais razões para ver o filme de Michael Mann...


sexta-feira, 26 de julho de 2013

FILME: «O Selvagem» de Jean-Paul Rappeneau

Nestes dias de verão, em que os disparates próprios da silly season correm por conta do (des)governo, dá gosto ver um entretenimento inteligente como o é este filme de Rappeneau rodado há trinta e oito anos, quando Montand ainda evocava algumas preocupações de esquerda e a Deneuve estava no auge da sua beleza.
À partida adivinhamos uma história romântica e não nos enganamos. Mas Rappeneau divertiu-se, e diverte-nos, a seguir caminhos diversos do que nos sugeriam os estereótipos do costume. Porque, sempre que interiorizamos a convicção de vermos a intriga adotar cânones do género, o realizador surpreende-nos com uma alternativa nos limites do credível, mas do tipo «estranha-se, depois entranha-se».
No início estamos em Caracas e temos Nelly (a personagem desempenhada por Catherine Deneuve) a fugir do iminente casamento com um persistente italiano, que conta com o apoio de toda a família em geral e da sua mamma em particular.
No hotel aonde procura refugiar-se dos perseguidores, Nelly conhece Martin (Yves Montand), que acabara de passar a noite com uma prostituta, e lhe facilita nova escapadela ao exaltado Vittorio.
Necessitando de dinheiro para o avião, que a leve de regresso a França, Nelly procura o seu antigo patrão na boîte aonde praticara provavelmente o alterne. Quem interpreta esse papel de Alex é Tony Roberts, que conhecemos dos primeiros filmes de Woody Allen. E que lhe recusa esse apoio. 
Aproveitando a confusão suscitada pela intempestiva chegada de Vittorio, Nelly pega num Toulouse-Lautrec pendurado na parede do escritório da boîte e inicia uma fuga na companhia de Martin - que procurara novamente no hotel aonde ele compensava no sono os seus recentes esforços! - e que acaba no aeroporto com o seu embarque no avião para Paris. Com Vittorio e Alex a falharem por um triz a interseção!
Estávamos já convencidos da transferência para França da continuação da história, quando acompanhamos Martin até à ilha aonde faz figura de solitário habitante e deparamos aí com… Nelly!
Nessa altura pensamos que Rappeneau terá de arranjar uma boa desculpa para acreditarmos nessa reviravolta e nos pormos a aceitar na love story, que se adivinha.
A explicação é plausível, mas no limite da inverosimilhança. Mas não tardamos a ser equivocados por nova surpresa no argumento: quando esperávamos, que eles vivessem uma relação tórrida com muitos filhos à mistura, eis que só partilham a cama na primeira noite, logo cortando relações e vivendo em casas distintas situadas o mais distantes possíveis entre si.
Acresce que Nelly conseguira, entretanto, afundar o único barco em que poderiam alcançar o continente pelo que sobrevivem na condição de náufragos desavindos.
Esperamos, entretanto, a salvação de uma mulher de meia-idade, que nos parecera obcecada afetivamente por Martin, captando-o continuamente com a sua câmara fotográfica chegando a sobrevoar a ilha num pequeno avião.
Mas não se trata afinal de nenhuma fixação platónica: ela está ao serviço da americana com que Martin casara e dos sócios do império de perfumaria de que ele fora o presidente até lhe dar a súbita vontade de imitar Robinson Crusoe. Afinal a aparente exploração agrícola da ilha é uma mistificação: os comerciantes a quem Martin vende a produção em Caracas são pagos por essa fotógrafa compulsiva.
Quem se antecipa, entretanto, é Vittorio, Alex e todos os seus mercenários, que raptam Nelly, incendeiam a casa principal da ilha e deixam Martin inconsciente no cais.
Na manhã seguinte, quando Miss Mark volta a sobrevoar a ilha de avião, depara com uma situação, que a obriga a recorrer aos grandes meios de que a firma de Martin dispunha: ele é levado para o hospital e só recupera daí a algumas semanas para ser levado de regresso a Nova Iorque. A complacência com o seu capricho de náufrago solitário acabou-se e ele é instado a retomar a liderança dos negócios.

Porque se escusa a essa hipótese, Martin é incriminado judicialmente por quebra de contrato e vai passar uma temporada à prisão.
Quando recupera a liberdade vai procurar Nelly em Caracas, mas Vittorio dá-lhe conta de a ter visto novamente desaparecer dias depois do casamento a que a forçara.
Será já em França, na terra que a vira nascer, que Martin a irá encontrar. E presume-se, que ocorrerá finalmente o final feliz...
É claro que subsiste no filme uma vaga reminiscência das ilusões de uma época em que a Ecologia começava a ganhar relevância ideológica, até então desconhecida.
Para muitos dos que contestavam a sociedade de consumo e os métodos do capitalismo selvagem, o regresso à Natureza afigurava-se alternativa atraente. Mas esse tipo de utopias apenas abriu portas ao agigantar de um monstro, que se viu sem constrangimentos a partir da invenção da perestroika pelo ingénuo Gorbatchov.
Na realidade quem execra a desigualdade social ficou muito mais desarmado, quando outras propostas ideológicas - supostamente mais irreverentes e radicais! - se vieram substituir ao modelo marxista, que até então predominara enquanto alternativa ao estado das coisas para que involuiríamos!



POLÍTICA: e quem leva o testemunho é ...

Quanto tempo conseguirá a direita fazer perdurar a ilusão de um novo ciclo? Quanto durará em paulo portas aquele rasgado sorriso na tomada de posse dos secretários de estado até retomar a habitual frigidez esfíngica que nos faz lembrar (sabe-se lá porquê?) a Catherine Deneuve?
Nas próximas semanas valerá tudo para dissipar o susto sentido por passos e todos os seus boys nas últimas três semanas quando lhes testemunhámos a angústia existencial de, também eles!, verem na crise uma oportunidade e prepararem as malas para demandarem novos empregos nos caminhos da emigração.
Dar tempo ao tempo, é o que precisamos, porque, a exemplo do escorpião da fábula, a natureza desta gente fala por si. E os rostos agora empossados denunciam os seus comprometedores laços com BPNs, Ongoings e outros que tais. É disparar um tiro e fica garantido um melro!
Para já é maria luís albuquerque quem mais se destaca na determinação com que agarrou o testemunho deixado por relvas quanto ao próximo remodelável potencial. O seu estado de negação em relação à evidência demonstrada pelos factos e provas documentais lembra aquele cavaleiro do Ni de um memorável filme dos Monty Python a quem iam cortando os braços e as pernas e teimava em desafiar o adversário com a maior das prosápias. Só faltou o “read my lips” para o desempenho merecer um Globo de Ouro.
Se não estivéssemos a pagar os custos da ação desta gente seria palpitante escutar os ecos surdos das guerras intestinas prometidas pela preparação do Orçamento para 2014. Sobretudo depois dos resultados das autárquicas deixarem uns quantos caciques laranjas a espumarem a ira contra quem lhes terá preparado o terreno para a perda das suas tão estimadas sinecuras!
É claro que também podemos contar com um enorme investimento em marketing e em intoxicação ideológica pelos muitos comentadores televisivos com que a coligação ainda confunde muitos incautos. Mas a falta de qualidade de tal gente é tal, que a realidade dos factos acabará por atirá-los para a sarjeta...



LIVRO: «Trilogia Suja de Havana» de Pedro Juan Gutierrez (4)

À medida que avanço na leitura da «Trilogia Suja de Havana» há um paradoxo, que vai tomando forma: o protagonista, que se autobiografa, vai caindo na miséria e na devassidão mais lastimosas como comprovação do agravamento da crise económica e social subsequente à destruição da União Soviética e do corte dos apoios daí chegados à pequena ilha do Caribe. Mas é precisamente essa queda no abismo, que o tornará num escritor de sucesso. Assim, enquanto sobram muitos cubanos a, por essa segunda metade dos anos 90, arriscarem a travessia do braço de mar até Miami em barcaças improvisadas, Pedro Juan só tem que acrescentar um ponto ao conto para se transformar num escritor de sucesso.
O sucesso literário do escritor provém exclusivamente dessa imagem corrompida de Cuba, que constitui o ajuste de contas com um regime de que se viu excluído: Não gosto de falar das etapas da minha vida porque é remexer na dor. Mas é assim. Vive-se por capítulos. E é preciso aceitar. Muita gente à minha volta injetou rancor e ódio no meu coração. O final era previsível: mergulhar no caos, seguir para baixo e não parar senão no inferno. (pág. 204)
A miséria de então fazia estragos. E o principal passara a ser a torpeza que se apossara de toda a gente, não se vislumbrando sinais da generosidade e solidariedade coletiva, que deveria caracterizar a sociedade construída a partir do ataque à Sierra Maestra: A pobreza tem muitas caras. A sua cara mais visível é talvez a capacidade que tem de nos despojar da grandeza de espírito. Ou, pelo menos da largueza de espírito. Converte-nos em tipos ruins, miseráveis, calculistas. A única necessidade é sobreviver.(pág. 153)
Pedro Juan não se poupa a cair no nível mais rasteiro do que possa significar a perda de dignidade, Assim, num dia de bebedeira com uma mistela adulterada em que acorda sem sapatos e sem camisa no Malecón, a esmola é alternativa que lhe resta: Estendi a mão e comecei a pedir esmola a quem passava. Balbuciava apenas algumas palavras. Quando se pede esmola não se pode falar claro, nem raciocinar, nem nada. É-se um mísero animal, um micróbio que pede umas moedas por amor de Deus. Um pestífero. Sempre assim foi desde que o mundo é mundo. É uma arte pedir esmola e fingir que se é idiota, cretino, Bêbedo crónico, estúpido. Só um idiota pede esmola. (pág.194)
Terá sido por pouco que esse episódio não lhe custou a vida. Uma estadia longa no hospital ninguém lha tira, mas nem por isso se deteta nele um reconhecimento merecido pelos cuidados de saúde instituídos pelo regime castrista.
Mas, quando não alimenta rancores contra o poder político, Pedro Juan conforta-se com a abulia: Hoje não estou muito organizado por dentro. Não consigo escrever. Não páro de repetir a mesma frase: amo as cicatrizes, não as feridas. Por que será que repito isto que nem um paranoico? Amo as cicatrizes, não as feridas. (Pág. 160)
O livro vai-se aproximando do final, quando ele revela a inquietação suscitada pelo envelhecimento. Pressentindo a perda de muitas das suas características: E cá vou envelhecendo. E descobrindo que perco a capacidade de cinismo. Perco energia e alegria e poder de multiplicação. Já não consigo raciocinar com o mesmo cinismo como quando era novo e queria sempre ficar na minha e ter a última palavra. (pág. 179)