Apesar de injustiça de uma tal afirmação, L’Avventura poderia ser considerado o verdadeiro primeiro filme de Antonioni, ou, pelo menos, aquele em que o estilo e tom pareceriam «colar» melhor à imagem desse cineasta caracterizado por uma elegância algo aristocrática.
Tratou-se, porém, de uma laboriosa produção: após o fracasso de O Grito (1957), o cineasta sentiu-se desmoralizado. Os produtores consideravam o argumento incompreensível e com lacunas, mormente quanto ao desaparecimento de Anna.
Para começar as filmagens, Antonioni teve de contrair um empréstimo e recorrer a atores pouco experientes. Eis senão que O Grito teve um sucesso estimável em França, merecendo um artigo apologético de Alexandre Astruc na revista “Express”. Tanto bastou para convencer o produtor Cino del Duca a avançar com a verba necessária para a continuidade do projeto.
Ainda assim o filme foi violentamente assobiado por um público imbecil na sua estreia em Cannes, apesar de acabar por obter três prémios, entre os quais o especial do júri. Nesse mesmo ano de 1961 acabaria por ser premiado um pouco por todo o mundo ganhando a dimensão do filme mítico em que se converteu.
A história começa com Cláudia a procurar a sua amiga Anna na casa do respetivo pai, para que a acompanhe num cruzeiro com vários amigos pelo arquipélago das ilhas Lipari, comandado por Sandro, um arquiteto convertido em burocrata.
Quando o barco prepara a saída da pequena ilha de Lisca Bianca, Anna desapareceu.
Todos a procuram, incluindo a polícia, mas sem sucesso. Só Sandro e Cláudia é que se decidem a ficar por ali em busca da desaparecida, acabando por caírem nos braços um do outro apesar dos escrúpulos dela, que o sabia amante da amiga.
Acabam por se separar para prosseguirem a busca de Anna noutros cenários alternativos. É assim que Cláudia irá reencontrar os amigos na mansão do patrão de Sandro. Não a encontrando ali volta para os braços de Sandro numa altura em que a busca por Anna transforma-se numa errância sentimental.
Cansados, regressam à alta sociedade, a que pertencem, num imenso palácio aonde decorre uma festa. Mas Cláudia adormece. Ao acordar, na manhã seguinte, encontra Sandro na companhia de uma outra mulher com quem passara a noite. Juntos lamentam o ocorrido.
No filme todos parecem preocupados em não se dissociarem do meio social em que vivem, tornando-se quase caricaturalmente gregários.
A aventura do título é a de Anna, que decide desaparecer de forma improvável num minúsculo ilhéu. Para que Sandro e Cláudia se encontrem, se percam e voltem a reencontrar? Ou será a aventura desses romanos abastados, perdidos nessa Sicília profunda, aqui filmada como se o fosse por um etnólogo num continente distante?
O argumento assemelha-se a uma provocação com o enigma irresolúvel da morte ou da fuga da protagonista do primeiro terço do filme numa aproximação ao seu contemporâneo Psico (1960) em que Hitchcock também fizera assassinar Janet Leigh logo no início.
A exemplo de outros argumentos de Antonioni, esboça-se uma ficção policial, mas para melhor frustrar o espectador: a investigação vai parar a tantos impasses, que acaba por não desembocar em lado algum.
A ficção sentimental não se mostra mais assertiva e as lágrimas finais de Sandro, juntamente com a carícia hesitante de Cláudia na sua nuca, podem significar a resignação ou a rutura.
No fundo trata-se de um filme sobre a fragilidade dos sentimentos:
- É preciso tão pouco para que tudo mude?, interroga-se Cláudia.
- Até muito menos!, responde Sandro.
Compreende-se, assim, que se passe todo o tempo a observar os acontecimentos por pouco percetíveis ou compreensíveis, que se revelem.
Algumas cenas parecem demasiado longas, outras inúteis. É que, habituados a uma outra forma de estruturar a narrativa, temos a impressão de nos forçarem a atenção, quando nos obrigam a considerar o acontecimento na sua verdadeira duração e aparente gratuitidade.
Cláudia revela-se mulher sensível, dada à melancolia, lembrando a protagonista de Deserto Vermelho, quatro anos depois.
Por seu lado, Sandro é um falhado: como artista, já que renunciou à arquitetura para ganhar muito dinheiro; como homem, porque fracassa na possibilidade de se fixar afetivamente numa mulher. É a imagem perfeita do ambiente em que escolheu viver, feito de snobismo e riqueza, tal qual é descrito por Antonioni sem contemplações, nem severidade, como se estivesse a estudar uma termiteira.
Para filmar esta história de sentimentos volúveis, havia que criar uma distância adequada. Antonioni recorre para tal às suas experiências de profundidade de campo que já ensaiara em Cronaca di un amore (1950), aplicando-as a uma espantosa diversidade de paisagens desde o deserto rochoso de Lisca Bianca até às galerias do palácio de Taormina, sobrepovoadas de gente em festa.
Os enquadramentos recortados à lâmina, as linhas de fuga, a brancura dos magníficos edifícios rococó de Messina ou de Noto, fazem perdurar a emoção do olhar, a armadilha mental que suscitam...
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