sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

CINEMA: De Homero a Luke Skywalker ... passando por Tolkien

Em 1978, quando «Guerra das Estrelas» chegou aos ecrãs nacionais, eu integrava a tripulação do «Gerês», um petroleiro da Soponata, que alternava viagens na costa portuguesa com umas quantas aos portos soviéticos do Mar Negro.
Aproveitando uma escala em Leixões, formámos um grupo relativamente grande para ir ver o filme a um dos cinemas do Porto. Entre eles havia um fogueiro chamado Gaspar, homem rústico e corpulento, que tinha a virtude de nos servir de impressionante guarda-costas se a noite viesse a revestir-se de perigos imprevisíveis.
Mas, se tinha essa qualidade, o Gaspar possuía um defeito muito particular: não conseguia ver um filme calado!
Resultado: empurrado para uma das pontas do nosso grupo, ficou ao lado de uma senhora, que viera ao cinema acompanhada do marido e de outros familiares, por azar sem alternativas para escolherem outros lugares na sala completamente cheia.
Assim, muito embora o Gilberto Jordão (outro oficial de Máquinas!) o tentasse silenciar, ali estava o Gaspar no seu fulgor a acotovelar a senhora e a explicar-lhe: “agora vai ser assim!”, “vai ver que eles vão livrar-se desta!”. Depois, mais entusiasmado gritava para o ecrã:
- Cuidado! Olha aquele que está nas tuas costas!
Provavelmente os acompanhantes da pobre senhora teriam vontade em virarem-se a ele, mas a estatura do Gaspar dissuadia-os facilmente.
Pode-se pois imaginar que esse primeiro contacto com a saga do George Lucas ficou muito mais ligada a essa truculenta experiência pessoal do que à história em si. Por muito que adorasse ficção científica tudo no ecrã parecia ter matéria para usufruir a sério mas ... noutras condições!
Infelizmente só voltei a ver essa filme no exíguo ecrã de televisão, nunca me tendo dado ao prazer de o revisitar na mais conveniente largura de uma sala de cinema. Mas saí dali convencido de se tratar de uma espécie de western, com a diferença de ter o espaço estelar como cenário em vez da vastidão das pradarias.
Desde então nunca mais voltei a dar grande relevância à saga. Quando a televisão transmitia os filmes da primeira trilogia ia-os vendo com o agrado de quem continua fã do género, mas sem ler-lhe outras vertentes, que não as da intriga em si.
Daí que confesse o meu entusiasmo por este documentário de Kevin Burns. Porque é muito persuasivo na forma como associa as diversas histórias à mitologia grega de que George Lucas se tornara um fã incondicional desde que tivera aulas com o professor Joseph Campbell.
Mas o recurso a grandes narrativas da civilização não se fica por aí: há Shakespeare ou Tolkien, sem esquecer  a épica da Conquista do Oeste norte-americano.
Os seis filmes até agora rodados para ilustrarem as diversas épocas da saga constituem um «patchwork» de personagens incrustados no nosso imaginário ocidental.
É claro que, pelo meio, Burns também dá a palavra a gente pouco recomendável como Newt Gringrich - que se terá entusiasmado com a estratificação maniqueísta entre o Bem e o Mal, reportando-os à oposição entre a “boa” América e a “maléfica” União Soviética. Mas perdoam-se-lhe esses testemunhos dispensáveis, quando surge gente tão interessante e culturalmente consistente a possibilitar-nos interpretações estimulantes sobre personagens, que apenas associáramos a aventuras juvenis.
Afinal, como diria um conhecido amigo que, em tempos idos, se maravilhara com a possibilidade de todas as obras de arte poderem conter níveis diversos de leitura, «Guerra das Estrelas» merece voltar a ser apreciada com as pistas aqui avançadas...


DOCUMENTÁRIO: «Star Wars - As Origens de uma Saga» de Kevin Burns

POLÍTICA: se isto não é um cartão amarelo, o que é afinal?

Entrámos na época do faz de conta, de preferência através do recurso a estratégias do mais tenebroso populismo.
As televisões passaram a distrair os seus espectadores com as muitas histórias das praxes levando encarregados de educação a temerem pela sorte dos filhos, que já estão ou poderão vir a estar nas universidades e institutos politécnicos? Põe-se um crato qualquer a pousar para a televisão com uns quantos idiotas úteis e fica a ideia de que, doravante, nenhum meco se voltará a repetir.
Continuam-se a verter lágrimas piedosas pelo Rui Pedro ou pela Maddie? Logo temos a ministra da justiça a prometer uma base de dados de pedófilos, que parece garantir que nunca mais repetirão os raptos e abusos tão gratos aos correios da manhã das nossas bancas por serem garantia de mais lixo tóxico vendido sob a forma de papel.
E assim se vão distraindo os portugueses de quão grave continua a ser a situação económica e financeira do país, apesar de os matraquearem com «milagres» e com «soberanias restauradas». Agora até prometem uma «saída limpa» da troika, como se as condições da Irlanda estivessem aqui reunidas. Mas, como alertava manuela ferreira leite na sua intervenção semanal na TVI24, que importa vir a pagar muito mais em juros num futuro próximo em vez de valores bem mais comedidos através de um programa cautelar se a prioridade é fazer todos os possíveis para levar os eleitores a dar-lhes a vitória nas europeias e com elas ver alavancadas as possibilidades de repetir esse resultado nas legislativas e nas presidenciais seguintes?
Mas, ainda assim, há coisas que não vão batendo certo na propaganda contínua, que televisões e jornais vão divulgando em favor de passos coelho e seus comparsas. Um exemplo esteve nas eleições internas do partido laranja, que voltou a consagrar esta liderança com 15 524 votos. Ou seja, quase menos dois mil do que em 2012 e menos de metade dos que a tinham eleito em 2010.
Com o picante de terem existido 2138 militantes (ou seja 12%), que se deram ao trabalho de irem às secções para assumirem a preferência por candidato nenhum: 1.492 votos em branco e 646 nulos.  Se isto não é um cartão amarelo vindo do próprio balneário, o que é então?


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

DOCUMENTÁRIO: «A Sombra de Estaline» de Thomas Johnson (2013)

Uma das críticas, que se podem associar aos documentários disponíveis sobre o estalinismo é  a perspetiva unilateral por eles dada quanto a esse período histórico.
Invariavelmente vemos esse intervalo entre 1917 e 1956 (a data do XX Congresso do PCUS) como sendo o do primado do terror repressivo, das grandes fomes ou da paranoia do seu líder. Ora não se pode omitir ter sido essa a época de uma grande unidade nacional para derrotar o invasor nazi, que em Estalinegrado começou a perder o fôlego e a correr para a sua perda definitiva. Ou quando a economia rural baseada no latifúndio deu lugar a uma fulgurante industrialização, que projetou a URSS para a condição de temida superpotência começando por vencer a corrida espacial nos seus primeiros tempos.
Quando, nos finais dos anos 70, costumava aportar aos portos do mar Negro - Tuapse, Novorossirsk ou Odessa - o clima épico mostrado no filme de Eisenstein sobre a Revolução de Outubro já não existia. Vivia-se na estagnação brezneviana, que criaria as condições para a contrarrevolução ieltsiana. Mas era fácil encontrar quem, criticando o líder de então, assumia as  saudades do mitificado período anterior a Nikita Khrushchev .
Hoje em dia continuam a existir muitos saudosos do estalinismo e os documentários costumam mostrá-los como uns seres anacrónicos e meio tontos, que vão manifestar-se com bandeiras comunistas e medalhas ao peito sem saberem muito bem porquê. Pior ainda é a amálgama entre extremistas de direita e defensores do estalinismo, que convergem numa espécie de neoestalinismo lepenista.
Em suma, de tantos documentários passados pelo nosso olhar, não se vê um que seja capaz de abordar a herança estalinista com outra perspetiva senão a de um maniqueísmo apostado em convencer sobre a sua tese conceptual em vez de procurar demonstrá-la mediante argumentos mais aprofundados.
No caso deste filme de Thomas Johnson a regra é a acostumada: enfoca-se a amplitude dos crimes cometidos durante a grande fome de 1932-33 na Ucrânia, que terá provocado entre 2,5 e 6 milhões de mortos, e o 1,5 milhão de fuzilados entre 1936 e 1939. E, claro,  os 18 milhões de deportados para os goulags siberianos.
Mas Johnson reconhece que a figura de Estaline permanece popular na Rússia e até em ascensão no favor da generalidade da população. Razão que baste ao regime de Poutine para ser bastante comedido na condenação dos seus excessos e nem sequer pensar em pedir perdão às vítimas.
O documentário dá  quase exclusivamente a palavra aos militantes da associação Memorial, que foi criada em 1989 por militantes anticomunistas sob a égide de Andrei Sakharov e destinada a recolher os depoimentos das vítimas e dos familiares dos que passaram por tal repressão. Temos, assim, uma catadupa de testemunhos mais ou menos enquadrados pelo do historiador hoje à frente de tal instituição: Arséni Roginski. Segundo ele existe uma amnésia voluntária sobre esse período, que condiciona a qualidade da democracia por que muitos lutam.
Com as reservas de quem não ilude a falta de objetividade dos seus propósitos, o documentário não deixa de constituir um bom estímulo para questionar a História e partir dela para a compreensão da Rússia contemporânea. Tanto mais que, sendo clara a sua desafetação do ideário estalinista, Poutine não hesita em reter-lhe algumas das mais eficientes estratégias de propaganda para prosseguir a via de sustentação de um capitalismo de Estado fomentador das gritantes desigualdades hoje constatáveis no enorme território que vai das fronteiras orientais da União Europeia a Vladivostoque.


MÚSICA: Pete Seeger, o Poder da Canção

Comprei os meus primeiros dois álbuns de Pete Seeger, numa discoteca da Baixa de Manhattan.
Estava um frio terrível nesse Natal de 1978, que tornava penosa a visita a diversas lojas antes de conseguir encontrar o que pretendia. Só à sexta ou sétima tentativa desse cirandar pela 5ª, pela 42ª ou pela Avenida das Américas batidas pelo vento gélido vindo do rio, é que fui bem sucedido. Já chegava a suspeitar da impossibilidade de encontrar obras de um cantor conotado com o mais que suspeito Partido Comunista local.
Nesse dia acompanhava-me um colega, o Américo, que pretendia dar satisfação a gosto mais prosaico: o sucesso do momento, que era a banda sonora do filme «Saturday Night Fever». E que encontrou logo à primeira tentativa.
Recordo o quanto tremeliquei no regresso a bordo, apanhando o ferry para o lado de Staten, e o catraeiro que nos devolveu ao portaló do «Inago».
Sentia-me, então, em tal estado hipotérmico que preferi descer à Casa das Caldeiras em vez de subir ao camarote: quase encostado aos queimadores das fornalhas tratei de recuperar o calor perdido naquela busca.
Mas daí a um par de horas, depois do jantar na messe, tive a compensação de pôr os discos a tocar, fazendo-os  ecoar pelos corredores de todo o casario à ré. O tema mais empolgante chamava-se «We Shall Overcome» e dava um suplemento de alma a quem andava descoroçoado com o rumo da Revolução de Abril e continuava a querer acreditar na exequibilidade da Utopia para o curto prazo. E todos quantos ali se sentavam naquele camarote, a beberem um whisky e a falarem das suas aspirações e inquietações, comungavam dessa esperança em como haveremos de lá chegar!



FILME: «Lincoln» de Steven Spielberg (2012)

Houve um tempo em que os Republicanos norte-americanos serviam de força motriz à evolução civilizacional, que  a alteração dos meios de produção e a estrutura económica do país exigiam. Na época eram os Democratas quem procuravam impor um travão à dinâmica dos acontecimentos, mediante a tentativa de manterem intocado o sistema de escravatura.
Compreende-se a intenção de Spielberg ao abordar o passado do seu país, século e meio atrás, quando existia uma forte contenda entre a Casa Branca e a Câmara dos Representantes: democrata convicto, ele quis lembrar ao público norte-americano esse passado heroico em que o partido contrário estava em consonância com o sentido da História, longe dos tempos atuais em que se o vê comprometido com a agenda retrógrada do Tea Party. Trata-se, pois, de confrontar os republicanos de hoje com o reflexo das suas pretéritas tradições!
Existe, assim, um aspeto utilitário nesta produção, que visa facilitar o esforço da Administração Obama em levar por diante algumas reformas para as quais os republicanos têm cuidado de semear os mais porfiados bloqueios.
Se dúvidas subsistissem o discurso do Estado da União ontem proferido pelo Presidente no Capitólio ai estaria a reiterar a agudização das diferenças a que se chegou nas terras do tio sam.
Para nós, europeus, que estamos relativamente alheados dessas disputas - muito embora tivéssemos seguido atentamente as mais recentes presidenciais como se nelas também tivéssemos o direito ao voto! -, podemos apreciar o filme de Spielberg na estrita vertente da sua valia cinematográfica. É certo que saímos dele com reações ambivalentes: reconhecemos-lhe a mestria das interpretações e de todas as vertentes técnicas associadas à realização, mas desejaríamos o recurso a algumas elipses capazes de evitarem a sensação de tédio por cenas demasiado alongadas para o que importaria ao fio condutor da intriga.



IDEIAS: a urgente necessidade de reinvenção da Europa

A Europa é uma união transnacional, que mais se assemelha a um patchwork heterogéneo do que à promessa de uma nação à escala continental. Mas não é essa afinal a sua divisa? In varietate concordia (unida na diversidade)?
Ela não se cinge, ainda assim, à definição geográfica. A Europa política não pode ter apenas por base a Europa histórica. Senão bastaria a Turquia ser ajuizada pelo seu papel no grande período da Europa Mediterrânica para já fazer todo o sentido estar integrada.
Ora, os critérios estabelecidos em Copenhaga, em junho de 1993, para a admissão de novos países à União enfatizam o respeito pelos direitos humanos numa lógica comunitarista, a existência de sólidas instituições a garantirem o Estado de Direito democrático e uma situação económica não muito distanciada da dos países já integrados.
Logo, quando esses critérios foram preenchidos, não existirão obstáculos para que uma Ucrânia, uma Turquia, uma Arménia e, a um prazo mais alargado, todo o Magreb, venham a inserir-se na União Europeia ou em qualquer outra designação por que será então identificada.
Embora a ideia europeia tenha surgido do imperativo de um futuro de paz num continente entretanto massacrado por duas guerras mundiais bem como da necessidade de o preparar para o advento de uma progressiva mundialização, ela já fora objeto de especulação por Nietzsche, que antevia a união europeia de forma depreciativa, porque facilitaria o sucesso da mediocridade, ainda que pudesse ser eficaz na contenção dos nacionalismos. Ora, o filósofo alemão execrava quase tanto os nacionalismos, quanto os ideais democráticos.
Mas até se pode recuar ainda mais - à época do Renascimento - para detetar ambições da união das nações a uma escala europeia, quando se começa a recuperar da Antiguidade Clássica um dos conceitos de maior relevância para o futuro da civilização: o da Democracia. Que levará séculos a concretizar-se, mas se tende a consolidar depois de muitos avanços e recuos na sua implementação.
Quando, em 1935, Edmund Husserl proferiu uma memorável conferência em Viena, anteviu com justificado pessimismo a evolução europeia, porque sentia em perigo o carácter diferenciador do continente em relação aos demais: o de dar tanta importância ao papel filosófico de propor objetivos para os quais a tarefa de os alcançar se tornaria infinita.
Por essa altura Husserl testemunhava as derivas da razão, que tendiam a desviar a Europa do seu desígnio de condutora da História dos homens. Perante o momentâneo sucesso dos regimes fascistas o filósofo constatava a existência de uma clara distinção entre a Razão e as ideologias da Razão, que tenderiam a dela desviar-se. Ora, sem essa verdadeira orientação racional, a Europa está condenada a tornar-se num continente igual aos demais.
Nesta época de crise da identidade - sobretudo quando estão iminentes  eleições, que prometem um inquietante sucesso das ideologias de extrema-direita - a Europa só pode vencer este questionamento do seu projeto se se for capaz de reinventar e relançar…