Publicado há quatro anos o ensaio de Michela Marzano intitulado «Extension du domaine de la manipulation - de l’Entreprise à la vie privée» poderá ter de ser lido à luz das novas circunstâncias suscitadas pelo culto da austeridade, que fez regredir as relações de poder dentro das empresas, mas continua muito pertinente na forma como analisa a estratégia capitalista para manter a exploração das mais valias apesar de tratar os assalariados com outro respeito e aparente autonomia.
Comecemos por abordar o livro na sua introdução:
Houve um tempo em que, no Ocidente, aquele que tinha a sorte de ter um trabalho, sentia-se feliz. Desde que acordava preparava-se para enfrentar um dia recheado de novos encontros e de desafios a superar.
A caminho do emprego, enquanto a rádio repetia a necessidade de “ousar a reforma permanente”, pensava na reunião da véspera. Era necessário mobilizar as equipas, agir na urgência, ser reativo…
A exemplo dos colegas, tinha confiança no chefe, um homem excecional, que pretendia derrubar as “muralhas internas” e “vencer os imobilismos”.
Ao chegar ao escritório, tão-só aberto o correio eletrónico, logo o telefone começava a tocar. Concluída essa chamada, já a secretária aparecia a anunciar-lhe o início da reunião agendada.
“Não basta ser competente, é também necessário assumir plenamente a sua missão. A paixão vale mais do que o conhecimento.”
O consultor que o dizia estava contratado para motivar os recursos humanos.
“Vocês são os atores do vosso próprio sucesso e da vossa felicidade. A empresa dá-vos os meios de crescerem e emanciparem-se”.
Na pausa do café, o superior hierárquico alertava noutro sentido: “É preciso carregar no prego a fundo: a Direção dos Recursos Humanos acaba de rever em alto os nossos objetivos”.
Já tinham passado várias horas, que saíra do seu gabinete e não cumprira um terço das tarefas a si atribuídas. Fora-lhe atribuído um planeamento e era necessário respeitá-lo. A terapeuta conjugal fora definitiva: “Para ser bem sucedido no casal, é preciso querê-lo. Energia, entusiasmo e empenhamento máximos”.
À noite ele estava fatigado. Mas, ao apagar a luz, já pensava no dia seguinte. Preparava-se para enfrentar um novo dia recheado de encontros e de desafios a superar...
Este mundo, que parece extraído de um mau romance, é o nosso! Mas temos dificuldade em reconhecê-lo ou, mesmo vendo-o, parece-nos tão óbvio, que deixamos de conseguir ter sobre ele um olhar crítico. E é essa uma das características principais do homem moderno “talvez iludido pelo seu sentimento de superioridade”.
É importante que se diga existir quem esteja interessado em mostrar-nos este mundo pelos traços da conquista, da vitória sobre o passado. E, em aparência, parecem ter razão!
Desde os anos 70, o Ocidente saiu progressivamente do que Michel Foucault designava como um universo “disciplinar”, edificado sobre as ruínas da velha ordem medieval.
Esta saída de um mundo ordenado desembocou num novo horizonte, muito mais aberto em que cada um parece entregue a si mesmo.
Ao longo dos anos surgiram mudanças tecnológicas, que aceleraram essa pretensa emancipação dos indivíduos e engendrou um novo tipo de capitalismo.
As alterações culturais e psicológicas, que acompanharam estas transformações da sociedade liberal, produziram um “hiperindividualismo”, um sentimento de insignificância, um narcisismo de efeitos devastadores no ocidente, que alguns não se cansam de condenar.
Assistimos hoje ao que, em jargão epistemológico, se designa como uma “mudança de paradigma”, que pode causar vertigens, mas se revela extremamente sedutor.
Do modelo “paternalista”, segundo o qual a autoridade religiosa, moral ou política, podia interferir constantemente na liberdade dos indivíduos em nome do Bem ou de prevenir o Mal, passámos para um modelo individualista segundo o qual ninguém pode, melhor do que o indivíduo, determinar a sua conceção do Bem e do que quer ou não fazer.
É a realização do sonho liberal de Isaiah Berlin, que evoca o desejo intrínseco de cada homem tornar-se no sujeito da sua própria vida: “acima de tudo, desejo conceber-me como um ser que pensa, que quer, que age, assumindo as responsabilidades pelas suas escolhas e capaz de as justificar em função da sua própria perspetiva das coisas.
Doravante, neste novo paradigma, a liberdade é pintada de acordo com esse tríptico de valores mobilizadores: autenticidade, voluntarismo, autonomia.
O indivíduo contemporâneo, que não quer deixar-se circunscrever ao papel para ele estipulado pelos outros, tem finalmente a sensação de poder vir a ser, finalmente, o que é: vivemos no culto da autenticidade.
Ligado ao seu portátil e em ligação com o mundo inteiro, pensa possuir os meios materiais e tecnológicos para realizar o que queira: é o culto do voluntarismo.
Libertado dos antigos constrangimentos morais, que lhe ditavam o que deveria fazer, o homem ocidental crê-se capaz de determinar precisamente o que deseja: é o culto da autonomia.
Temos, pois, um antigo conceito de autoridade aparentemente marginalizado dentro da instituição empresa em nome da autonomia. Hoje é-se incentivado a arriscar, a gerir as suas próprias tarefas.
O problema é se os objetivos não são atingidos. E eles são tantas vezes definidos com tão injustificada ambição, que funcionam como uma miragem inalcançável. Gerando culpabilização nos que se sentem incompetentes para alcançarem tal sucesso e são “convidados” a dela saírem..
Vivemos, pois, num sistema em que se continua a explorar o trabalho de alguém, mas em que, perversamente, se passa a responsabilidade da maximização dessa exploração para o próprio assalariado.
Às tantas pode-se questionar sobre qual dos sistemas era menos injusto: se quando o patrão esmagava, ou se quando ele nos passou a “reconhecer” autonomia?
Verifica-se no presente uma servidão voluntária, fruto de uma manipulação destinada a fazer crer ao assalariado em como está a trabalhar no seu próprio interesse, quando, na prática, só colabora no alargamento da mais-valia retirada pelo patrão do seu esforço.
Na prática o assalariado moderno reproduz a conhecida imagem do operário em «Os Tempos Modernos», quando é engolido pela máquina e, com um sorriso, continua imperturbavelmente a apertar os pernos, que supostamente é a sua função na cadeia de produção. Verifica-se aí o abandono do seu próprio desejo numa engrenagem totalmente desumanizada.
Vivemos numa sociedade manipuladora, que quer convencer os explorados em como são tratados com respeito e com liberdade. E até há grandes empresas, que têm ginásios no local de trabalho para usufruto dos seus assalariados. Que vão para as passadeiras ou para os aparelhos competirem sempre por melhores desempenhos, replicando, mesmo em suposta pausa de trabalho, o comportamento, que lhes é exigido durante a execução das suas tarefas. Como demonstrava Hanna Arendt num conhecido ensaio, a melhor prisão acaba por ser aquela em que não se veem as grades.
E, no entanto, torna-se normal estar 24 horas por dia contactável através do telemóvel Mesmo quando se vai de férias! E, até estas, não são encaradas enquanto forma de satisfação de uma necessidade intrinsecamente pessoal, mas como forma de recarregar energias e possibilitar melhor produtividade no regresso ao trabalho.
Estamos, pois, numa fase de transformação do conceito de trabalho, mas em que se mantém o objetivo capitalista de gerar uma determinada produção, que não beneficia senão muito parcialmente, quem a cria, espoliando-se parte do seu valor por quem tudo faz para manter perdurável esta relação desigual de direitos e deveres...
Sem comentários:
Enviar um comentário