Nos últimos anos de vida, o meu avô João fez-me confidente privilegiado das suas vicissitudes Flandres, quando integrara o Corpo Expedicionário Português aos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Curiosamente - a cinquenta anos de distância! - o que mais me fica dessa reminiscência é o seu ódio profundo aos ingleses a quem culpava de terem abandonado os portugueses à sua sorte na batalha de La Lys.
A emoção ainda o tomava quando verbalizava o egoísmo desses «Aliados», que tinham pensado em si mesmos sem acudirem a quem, ali quase a seu lado, se vira subitamente transformado em fácil alvo dos atiradores alemães.
Entender-se-á por isso o seu envergonhado pendor germanófilo, quando a Segunda Guerra deflagrou, o que constituíra um paradoxo para quem ajudara os amotinados da revolta dos marinheiros de 1936 a esconderem-se na sua adega, quando alguns tinham nadado em busca de refúgio nas quintas da margem sul. Alguns desses oposicionistas ao regime ainda os conheci brevemente na época em que as vindimas acabavam e o meu avô mandava matar o porco, que engordara durante um ano para servir de repasto a tal ocasião.
Na soturnidade da adega, entre o bacalhau e as febras abundavam as histórias quer de quem com ele andara pelos campos belgas, quer dos que ali tinham encontrado o momentâneo porto de abrigo das fúrias da PVDE.
Mas a ambiguidade com que se situava ora à esquerda, ora à direita das situações políticas, onde era sobretudo observador, também o levara a lamentar a morte de Sidónio Pais por nele reconhecer o político, que estivera contra a arregimentação dos jovens portugueses do seu tempo para servirem de carne para canhão na guerra das trincheiras.
Nunca apurei se o estado de espírito com que, a posteriori, via a sua dificultosa incorporação no exército seria a mesma com que partira. Porque, como defende a historiadora bósnia Husnija Kamberovic, “as populações beligerantes não foram apenas vítimas da guerra. Foram também agentes da sua própria vitimização. Ao consentirem lutar, gastar dinheiro para suportar o esforço de guerra, permitiram que o conflito durasse tanto quanto durou. É fundamental que compreendamos por que consideraram esta guerra defensiva, necessária, com significado existencial.”
Não me custa acreditar que, ao partir de Lisboa, o meu avô João estivesse entusiasmado com a participação numa aventura para que o impeliam os seus vinte anos, com promessas de ver outras terras e outras gentes, e até acreditasse na importância de, assim, defender as colónias então seriamente ameaçadas pelo Império Alemão. Esses argumentos terão bastado para convencer os que a República recrutou para ganhar o direito ao quinhão dos vencedores, quando o silêncio se instalasse definitivamente nos campos de batalha.
Não esqueçamos que as principais potências europeias desse tempo tinham dado por adquirido, que dividiriam entre si as ricas colónias portuguesas.
Para o meu avô e para os que com ele conseguiram regressar vivos a mudança de opinião relativamente a Afonso Costa e aos demais líderes republicanos terá decorrido do tremendo morticínio registado na forma de imagens concretas e cheiros nauseabundos.
Neste ano do centenário do início dessa Guerra iremos ler e ouvir muitas histórias sobre o sucedido. Mas, para se ter a noção da dimensão efetiva desse acontecimento histórico basta pensar em duas estatísticas eloquentes:
· nos cinco dias que durou a batalha no rio Marne morreram mais de cento e cinquenta mil franceses e alemães. O triplo de quantos norte-americanos morreram nos dez anos em que estiveram no Vietbname;
· foram mais numerosos os portugueses, que perderam a vida em luta contra os alemães nas colónias africanas do que os que, no mesmo período, morreram nos palcos europeus da Grande Guerra.
A realidade traduzida por estes dois indicadores mostra como ainda temos tanto a conhecer sobre um período, que marcou significativamente o mundo em que vivemos.
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