quinta-feira, 30 de abril de 2020

Discutíveis estratégias a curto e longo prazo


O texto desta manhã vem suscitando alguma polémica em qualquer dos dois pontos que o integram. Daí que valha a pena esclarecer um e outro de forma a melhor clarificar o que dizem.
Quanto à ministra Marta Temido não está em causa a quase unanimidade, que suscita o sua tutela eficiente de todas as instituições públicas de saúde no combate à crise suscitada pelo covid 19. O que aqui se questiona é a estratégia negocial de quem encara a possibilidade de recorrer aos hospitais privados e lhes pré-anuncia o quanto deles carece para levar a bom porto a sua missão. Que a eles viesse a recorrer, garantindo condições e custos, negociados de igual para igual, numa lógica de win-win, poderíamos compreender momentaneamente em nome do bem coletivo. Ora, ao dizer que este não será garantido sem a imprescindível participação de quem lucra com a saúde dos portugueses, significou pôr-se numa posição de fraqueza, que tais interlocutores procurarão potenciar numa negociação win-lose. E não é preciso ser um grande ás em gestão negocial para compreender essa imprudência. Até porque ninguém pode duvidar da voracidade gananciosa com que esses interesses privados no setor da saúde quererão aboletar-se o mais possível com lucros, que cubram por excesso os prejuízos verificados nos meses mais recentes.
Quanto ao meu estimado amigo Jaime Santos, cujo comentário ao post matinal voltou a dividir-nos entre a minha defesa de uma sociedade socialista e a da sua, focalizada na social-democracia como os nórdicos a praticaram em tempos idos - quando a selvajaria neoliberal remeteu essa receita para o caixote do lixo da História, conjuntamente com a tremenda vigarice que foi a Terceira Via -, lembro a história tantas vezes contada pelo José Mário Branco a propósito da descoberta da cura da sífilis. Paul Ehrlich, o cientista que a conseguiu, fez 913 tentativas falhadas antes de, à 914ª, alcançar o sucesso. Nalgumas dessas tentativas, nomeadamente, na 606ª os doentes submetidos a tal frustrada cura até morreram, já que incluía arsénico na composição. Mas, quando a conseguiu, em 1909, a doença deixou de implicar o destino trágico, que tantos vitimou. Nesse sentido Ehrlich personificou aquela máxima atribuída a Samuel Beckett segundo a qual haveria sempre que falhar, falhar muitas vezes, mas falhar sempre melhor. Ou seja mais aproximadamente daquilo que se pretende alcançar.
Discordo, pois, da citação erradamente atribuída a Einstein ou a Rita Mae Brown - terá sido de facto Locke a proferi-la? - segundo a qual acumular tentativas falhadas à espera que deem resultados diferentes é sintoma de insanidade. Ehrlich demonstrou-o e a história humana está recheada de muitos exemplos em como não é assim. A maior parte das grandes descobertas científicas resultaram de erros infindáveis até resultarem na invenção pretendida, ou às vezes até mesmo inesperada como sucedeu com a penicilina. E tratando-se do materialismo científico - expressão que decerto fará o referido amigo arrepiar-se - como não esperar que assim também suceda?
Vale a pena, igualmente, relativizar um tipo de análise da História do século XX, que defende uma postura demasiado maniqueísta em que uns foram terríveis algozes e os outros uns santos prontos a serem colocados num altar. Se é verdade que as experiências socialistas implementadas nesse século sempre falharam, saldando-se por milhões de vítimas, muitas mais conta o capitalismo nas diferentes versões que, no mesmo período se lhe conheceu, desde o sinistro nazi-fascismo ao não menos odioso colonialismo, sem esquecer as muitas vítimas de um sistema, que reduz milhões de pessoas à indigência ou à pobreza para que os seus principais beneficiários acumulem capital improdutivo, porque chegou-se à fase da financeirização global feita de especulações bolsistas sem equivalente tradução no investimento de produção de mais riqueza. Que seria, por outro lado, prejudicial ao próprio planeta, cujos recursos limitados não aguentariam acréscimos significativos na sua sobrexploração.

Tiros nos pés


1. Marta Temido tem sido quase exemplar na gestão da crise do covid 19, mas as declarações agora produzidas num podcast a respeito da necessidade de recorrer aos hospitais privados para solucionar os atrasos nas cirurgias aprazadas para esta altura dececionam quem acredita que a resposta está no reforço do Serviço Nacional de Saúde e nunca em premiar quem pouco ou nada contribuiu para responder à emergência dos últimos meses.
Esperar-se-ia da ministra que perspetivasse a contratação de mais médicos, enfermeiros e técnicos em regime de exclusividade, melhor remunerados e com perspetivas de formação e de carreira não garantidos pelos seus atuais empregadores privados. Porque não se duvide que outras pandemias poderão seguir-se: mesmo conseguindo-se uma vacina eficaz contra este vírus muitos outros poderão assolar-nos porque mantêm-se presentes as causas por que eles se propagam entre nós: a globalização, a mobilidade das populações, a destruição de espaços selvagens colocando as suas ameaçadas espécies em contacto com a nossa «civilização». Daí que urja manter em estado de aleta todos os meios de resposta a esta e a novas crises porque, como tantos cientistas o asseveram, poderão advir.
Ao confessar a impreparação do SNS para responder à dimensão do que os portugueses necessitam atualmente para verem satisfeitos os direitos constitucionais à saúde, Marta Temido pôs-se a jeito para que as Administrações dos grupos privados estejam a salivar perante a possibilidade de, em poucos meses, verem compensados os prejuízos destes meses de assumida passividade perante uma crise para a qual nunca se mostraram dispostos a serem solução. Com tantos exemplos de práticas duvidosas denunciadas nas semanas mais recentes - tentativas de faturar com clientes que o SNS não lhes enviara, faturação aos clientes dos kits de proteção dos seus profissionais - sabemos que a prioridade dos interesses privados do setor sempre terá a ver com a maximização dos seus lucros. Dar-lhes munições para continuarem a sabotar o Serviço Nacional de Saúde, como o vêm fazendo até aqui, só nos empurra para o tipo de situações como a vivida nos Estados Unidos em que milhares de doentes morrem por falta de cuidados médicos, não tendo como os pagar.
2. Se a atual titular da Saúde andou mal neste erro de comunicação do seu pensamento, também Francisco Louçã vem produzindo reflexões, que nada ajudam à superação da presente situação. Leia-se o ensaio sobre o medo publicado na edição mais recente do «Expresso Revista» e espantemo-nos com o seu surpreendente pessimismo, que o leva a antever futuros sombrios em vez de neles identificar razões para ter esperança. Semanas atrás, em esforço semelhante Slavoj Žižek aventara a possibilidade de nos encaminharmos para uma outra forma de comunismo, diferente das que foram lamentavelmente ensaiadas em várias latitudes durante o século XX e em que se cumpram as louváveis intenções dos tios Carlos e Frederico sem as odiosas colateralidades totalitárias.
Detalhando os sintomas, Louçã mostrou-se incapaz de ir-lhes além e produzir o esforço intelectual do tio Vladimir quando, na sequência do fracasso da Revolução de 1905, se preocupou com a  questão do «Que Fazer?».
Ademais, noutros textos Louçã enfeuda-se no esforço dos que, à direita, querem à viva força provar a inevitabilidade austeritária das políticas implementadas por António Costa nos próximos meses. Ora, como escrevia Ferreira Fernandes, no «Diário de Notícias», a pesca à "austeridade" na boca de Costa é um exercício de ignorantes que não sabem que em tempo de grandes crises o dizer dos governantes pode trazer imprevisíveis desgovernos numa situação já de si caótica.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Um pingo de sensatez mas por quanto tempo?


Porque quem o tem, facilmente tem medo, Boris Johnson parece ter menos pressas em aliviar o confinamento dos britânicos do que as havidas quando não o decretou quando mais era necessário. Sentir na pele e, sobretudo, nos pulmões, os efeitos do vírus bastou-lhe para tomar um banho de realidade, que lhe devolveu a sensatez perdida nos tempos do jornalismo e ainda não se deixava tentar pela costela arrivista tão explicitamente demonstrada ao escolher o campo de batalha entre quem queria ficar na União Europeia e os que dela se pretendiam apartar.
Na crónica de hoje o Miguel Esteves Cardoso diz preferir esta faceta do Boris como tivesse garantias dela lhe perdurar nos próximos tempos. Que não é assim mostra-o Bernardo Ferrão, um dos locutores da SIC, que se julgam jornalistas por se atiçarem nas críticas ao governo. Há um par de anos atrás ele passou por um ataque cardíaco no aeroporto, não poupando então nos elogios ao Serviço Nacional de Saúde, que afiançava ter-lhe salvo a vida. Nessa altura pôs-se a hipótese de vir a ser mais comedido nas intervenções e escolhas de convidados no «Expresso da Meia-Noite» que, com a saída de Nicolau Santos, se tornara numa coisa ainda mais tendenciosa do que costumava ser até aí.
Engano de quem se quis iludir: não tardou muito para que ele voltasse ao antigo «normal» e mordesse nas canelas do governo quando o ensejo se lhe apresentava, quase sempre sem verdadeiros fundamentos que o guiassem.
Perante esse luso exemplo não há muito a esperar do primeiro-ministro inglês até por saber-se contemplado com uma oportunidade de ouro para se safar da enrascada mais problemática: a de explicar ao eleitorado inglês como o rompimento com Bruxelas não lhe terá garantido o prometido tempo das cerejas mas, pelo contrário, a perda de empregos e de rendimentos. Agora tem o vírus prontinho para lhe servir de bode expiatório. Nesse sentido revela-se bem mais esperto que Trump ou Bolsonaro cujos sinais de desespero se agudizam nos últimos dias: um e outro sabem que o recurso a esse tipo de expedientes não escamotearão a incompetência com que reagiram à crise atual e cujos efeitos devastadores não cessam de nos espantar pela sua dimensão nos respetivos países.