sexta-feira, 3 de abril de 2020

Dando breve atenção ao coro das carpideiras


Ontem, ao ver o Jornal da Noite da SIC, armei-me de estoicismo para ouvir o Bernardo Ferrão e, sobretudo, o José Gomes Ferreira a comentarem as mais recentes medidas decididas pelo governo para consubstanciar o atual estado de emergência. Se o primeiro não me suscitou grande agravamento do estado de urticária mental sentida quando os ouço, o segundo esteve ao seu «melhor» nível, apelando á pieguice dos prosélitos a respeito dos pobres dos patrões, que a malvadez governamental impede de despedir trabalhadores conforme muitos o vêm fazendo nos últimos dias. No fundo tivemos o José Gomes Ferreira - nunca me conformo com o facto dele obnubilar a memória de um grande poeta do século XX com o mesmo nome! - a fazer de ... José Gomes Ferreira.
Há, porém, algo a ler colateralmente na sua função de indignada carpideira: o facto do capitalismo à portuguesa ser o que é. Quando tantas vozes costumam enaltecer o facto do tecido empresarial português ser constituído por  micro, pequenas e médias empresas, secundarizamos o facto de terem acionistas com escassa formação académica. E isso paga-se, porque a aposta é sempre no curto prazo sem atentar nas possibilidades adversas para as quais se enfia a cabeça debaixo da areia.
Sei-o por experiência própria: depois de duas dúzias de anos na marinha mercante, sedentarizei-me enquanto diretor de uma empresa de engenharia com uma centena de colaboradores, apostados na manutenção das instalações e equipamentos em grandes edifícios. Nesses anos deu para sentir bem a diferença entre o que era trabalhar para algumas das maiores empresas nacionais e multinacionais e o que significava prestar serviços a marcas e insígnias, cujos responsáveis se afirmavam cheios de ambição, mas que bastava um inesperado percalço -  e ele foi de monta quando se tratou da crise de 2011 - para verem as receitas reduzirem drasticamente e deixarem-me com o problema de muita faturação em atraso ou mesmo incobrável. Apostas de gestão como as agora demonstradas pelos donos d’«A Padaria Portuguesa» ficaram expostos em poucos meses: empresários que nada aprenderam com a fábula de la Fontaine sobre o sapo que queria ser tão grande quanto um touro e a procuraram replicar no seu negócio. Investiam sempre mais, recorrendo ao crédito bancário com a avidez de multiplicarem a dimensão, tornando-a crítica pela impossibilidade de não a prepararem para as contingências inesperadas.
Para José Gomes Ferreira, também ele um curioso da economia sem formação académica que lhe sustente as pretensões, o problema não é o facto de ser porta-voz de quem merece censura em vez de injustificada compreensão quanto à iniquidade das decisões para com os trabalhadores despedidos ou em vias de o serem. Nunca lhe ouvimos alguma censura por tais empresários sempre viverem dos salários de miséria e do frequente desrespeito pelos direitos laborais de quem empregavam.
Nesta altura esses empresários afirmam-se incapazes de suportarem dois meses de paralisação no seu negócio mas, muito mais provavelmente, se dispõem a abrir mão da acumulação de capital, que nunca terá deixado de ser o foco diário da sua gestão, para mostrarem-se solidários com os mais expostos à crise, ou seja com esses trabalhadores que terão explorado sem grande escrúpulo.
O problema maior que temos no país pós-crise é que os José Gomes e aqueles que defende nada aprenderam com a crise de 2011 nem nada serão capazes de reter de substancial da atual. As suas mentes cristalizadas balizam-se em estreitas análises, que os forçarão a defender e a agir futuramente com a mesma inépcia. E, no entanto, as circunstâncias bem justificam que este tipo de capitalismo seja equacionado e posto em causa, ainda que porventura não seja ainda chegado o momento de lhe dar o merecido desiderato.

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