sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Os comportamentos inaceitáveis de Mário Nogueira


Eu até posso compreender o estado de desânimo de Mário Nogueira: tendo exagerado nas expetativas possíveis de alcançar viu-se desautorizado por uma realidade muito distante da que afiançara tangível. É normal que, colocando-se o céu como limite, a frustração de só alcançar os patamares mais baixos da atmosfera frustre o bastante para agir emotivamente sem olhar com o mínimo de racionalidade os seus atos.
Vem isto a propósito do lamentável episódio do Conselho de Ministros em Bragança, que quase foi invadido pela horda protestaria de Nogueira e seus seguidores. E, sobretudo, para o facto de haver quem, à esquerda, secunde a justeza do comportamento em causa.
Convém ter em conta que vivemos numa sociedade onde devem imperar as normas de direito democrático entre as quais se inclui o respeito por quem foi eleito para as suas funções. Essa legitimidade não pode ser contestada por arruaças insurrecionais, que podem dar efémero gáudio a quem as lança, mas põem em causa valores bastante mais relevantes. Duvido até que os principais dirigentes do PC subscrevam esta estratégia de Nogueira: embora a possibilidade de uma revolução transformadora surja como consequência da criação de condições materiais para a tornar possível, elas encontram-se muito distantes de se verificarem pelo que a agora concretizada colide com a tendência legalista do PC nesta conjuntura de democracia burguesa.
Acaso tivesse sido bem sucedido o Nogueira serviria de exemplo para, doravante, qualquer movimento contestatário achar-se no direito de o imitar e invadir as instalações onde o governo se reunisse. A perspetiva de golpe de Estado, que não lhes estaria nas motivações, entraria facilmente no imaginário coletivo como hipótese consistente. E, nesse sentido, um qualquer grupo de neonazis veria nela uma forma de rapidamente ganharem maior notoriedade. Não esqueçamos que a primeira tentativa de golpe de Estado de Hitler - o chamado putsch da cervejaria em 1923 - não foi muito diferente do que Nogueira agora intentou!
É por isso mesmo que esteve em causa um grave atentado ao Estado democrático e por isso merecedor de exemplar punição. Daí que reste ao PC uma alternativa: ou avaliza as táticas inaceitáveis de um dos seus principais cabeças-de-cartaz e perde a imagem de respeitabilidade e sentido de responsabilidade, que lhe tem sido reconhecida, ou chama-o à Soeiro Pereira Gomes e aperta-lhe merecidamente os calos. Sobretudo por servirem aos Venturas estas lamentáveis tentativas de deslegitimarem quem deve ser inquestionavelmente respeitado.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A campanha de medo que o Covid-19 potencia


A tese é, no mínimo, pertinente e descreve-se mais ou menos assim: em 11 de novembro de 2001 o ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque suscitou um tal sobressalto coletivo, que a Casa Branca encontrou escassas resistências para aquilo que não conseguira fazer por não ter justificações convincentes: a redistribuição dos campos de petróleo do Médio Oriente pelos interesses financeiros de que se sabia ser provedora. Bastou agitar vigorosamente a bandeira da defesa do Ocidente contra o terrorismo islâmico (mesmo nunca tendo surgido provas do seu financiamento por Saddam Hussein!) para avançar com a ocupação do Iraque. O que depois ocorreu com a Líbia de Kadhafi ou se passa atualmente com o Irão dos aiatolas inscreve-se na mesma lógica em que as grandes empresas petrolíferas americanas, inglesas e francesas viram os seus objetivos secundados pelas intervenções políticas dos sucessivos ocupantes da Casa Branca e pelos seus moços de recados, chamassem-se eles Tony Blair ou Nicolas Sarkozy.
Segundo um ensaio publicado em 2015 por Patrick Boucheron, Corey Robin e Renaud Payre - «L’exercice de la peur» - hoje citado por Manuel Loff na crónica no «Público»  os poderes políticos e os que com eles se concertam (ou mesmo os manobram na sombra) concluíram quão eficiente pode ser o exercício do medo na preservação e consolidação das relações de forças entre as diversas classes em conflito nesta fase crepuscular do capitalismo. Desapareceram os líderes que procuravam fazer-se amar pelos concidadãos, atirando-lhes areia para os olhos com falácias do tipo «comprando ações todos podem ser patrões das grande s empresas» ou «constituir um enorme benefício para todos que as empresas públicas sejam privatizadas, porque serão melhor geridas e propiciarão preços mais baratos». Hoje, cientes de já sobrarem poucos ingénuos para acreditarem nessas histórias da carochinha, tais poderes procuram congelar protestos fazendo-se temer - e isso é que fazem os Orbans, os Erdogans e outros políticos do seu calibre - ou, mais habilidosamente, empolando tudo quanto possa criar um circo mediático, que erradique da ordem do dia todos os acontecimentos paralelos suscetíveis de lhes suscitarem sobressaltos.
A crise com o Covid-19 revelou-se particularmente oportuna, porque teve origem na China e alimentou todas as campanhas anteriormente em curso contra o regime de Pequim, não tanto pelo seu suposto totalitarismo (embora ele constitua uma boa fachada para os verdadeiros objetivos dos seus promotores), mas porque esses interesses financeiros ocidentais temem ver-se secundarizados pelos que ascendem imparavelmente do Oriente. A promoção do ódio aos chineses, potenciando imprevisíveis reações xenófobas, constituiu uma oportunidade, que não foi desperdiçada.
Há, porém, a outra constatação possível a retirar de todo este caso: apesar de não ter a dimensão das gripes anuais, que se revelam bem mais perigosas, quer quanto ao número de infetados, quer quantos aos mortos, que provoca, o Covid-19 coloca os cidadãos ocidentais perante a incontornabilidade do medo, que veem estimulado por altifalantes permanentes.
Ora é esse medo, que os poderes procuram incrustar aprofundadamente no imaginário coletivo. Porque quem o tem mais facilmente se deixa arrastar para falsas soluções como o ódio ao Outro a pretexto dos refugiados ou a catarse das suas insatisfações mediante a associação dos políticos aos corruptos (dela isentando os venturados meninos de coro, que os enganam quanto à sua «diferença»).
Esses poderes, que podem tomar muitos nomes (complexo militar-industrial, grupo de Bildeberg e tantos outros) têm uma característica comum: todos eles estão ligados aos tais 1% de detentores da riqueza, que querem manietar a vontade dos outros 99% em contestar-lhes a ganância. E por isso não se privam de recorrer ao medo (hoje do Covid-19, amanhã de uma qualquer outra «ameaça aos ocidentais»), que adie o inevitável: que atrás de tempos, tempos vêm, outros tempos (que não os seus!) hão-de vir.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Será estupidez ou falta de escrúpulos?


Muitos sabem que nas primeiras duas dúzias de anos da minha vida profissional exerci funções a bordo dos mais variados tipos de navios, navegando por todos os oceanos do mundo à exceção do Antártico (embora na Terra do Fogo não o tivesse tido a distância significativa). Quer isto dizer que estarei em condições de compreender melhor do que ninguém o sobressalto por que passou o tripulante do paquete acostado num porto japonês e convertido no improvável herói dos telejornais dos últimos dias. As várias televisões deram-lhe tempo de antena e quando ele não estava ligado ao skype era a conjugue quem repetia vezes a fio as mesmas banalidades.

Tratou-se de uma situação difícil? Foi-o sobretudo empolada artificialmente, porque sem comparação com as dificuldades vividas pelas tripulações no exercício do seu mister. Só olhando para o meu passado posso considerar ter sido incomparavelmente mais difícil a experiência de passar nove meses com vencimentos em atraso em dois navios que tive  a desventura de tripular em 1991. Ou quando se acabaram os alimentos a bordo de um petroleiro ao largo da Nigéria e não se via hipótese de reabastecimento sob pena de perder o lugar na fila dos navios à espera de carregarem em Port Harcourt, mas momentaneamente impedidos de o fazerem por estar em curso um golpe de estado na capital. Ou quando quase à chegada ao canal da Mancha, vindos de Gotemburgo, outro navio teve ao mesmo tempo um assustador incêndio nos porões da proa e, ao mesmo tempo, rombos que faziam a água entrar por um lado e sair pelo outo bordo consoante a inclinação variável do navio.
Comparando com esses três exemplos o que se passa com o artífice da Nazaré equivale a mudar fraldas a bebés. Pode ser desagradável mas são quase nulas as hipóteses de morrer do vírus (a média continua a ser de uma vítima fatal em cada quarenta pessoas afetadas!). Por isso a histeria alimentada pelas televisões e imposta aos dois protagonistas, coagidos a radicalizarem os propósitos para justificarem a imerecida atenção audiovisual, leva-os aos dislates mais absurdos, como se bastasse a vontade de Marcelo ou do Governo para retirarem de bordo o potencial paciente numa altura em que muitas centenas de passageiros e tripulantes ali retidos apresentavam sintomas mais preocupantes e não fosse natural que as autoridades japonesas, o armador e o próprio comandante impusessem as estratégias mais adequadas para lidarem com a contingência.
Uma vez mais - e nos seus sucessivos artigos o Prof. J-M. Nobre-Correia vem denunciando essa absurda prática - os jornalistas dos telejornais revelam uma tal incompetência em definir as prioridades, que acabam por adotar as mais fúteis como forma de conquistarem audiências. Haja quem se possa revelar o rosto e se o faça vítima de «poderes» tortuosos contra os quais se possam exacerbar as emoções e é um fartote. Que não tarda a ser explorado pelo populistas de extrema-direita: esta noite alguns apaniguados do Chega vieram para as redes sociais emitir ruidosas proclamações contra a hipocrisia das autoridades portuguesas por não resgatarem o seu novo herói. E, uma vez mais, não sabemos o que mais nos possa impressionar: se a estupidez crassa dos seus argumentos, se a despudorada utilização de todos os pretextos para se fazerem ouvir.



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

A crise da imprensa em Portugal


Nos últimos anos andamos a confrontar-nos com o desmentido de diversos axiomas, que considerávamos inquestionáveis. Trump ou Bolsonaro desmentiram a tese de ser a Democracia o menos mau dos sistemas políticos. Que as economias apostadas em dar a máxima liberdade aos «talentos» dos mercados ficavam mais prósperas e menos desiguais. Ou que a imprensa conseguiria ser o bastião incontornável pelo qual passaria a criação de uma cidadania ativa e informada. Acontece que, à pala da liberdade de imprensa, verdadeiramente só reconhecida quando os donos dos mercados a monopolizam (quem não se lembra da campanha contra Sócrates quando o vieram acusar de querer assumir os comandos da TVI?), a imprensa lusa tem caído num tal descrédito, que vem perdendo audiências no audiovisual e leitores na sua versão escrita.  Daí o ruidoso alerta dos que a consideram moribunda e propõem que nós todos, os contribuintes, que dela nos temos alheado, paguemos-lhe a sobrevivência através de subsídios generosos.
Que não é essa a solução têm-no demonstrado os sucessivos artigos que o Prof. J-M. Nobre Correia tem publicado nos meses mais recentes, nunca deixando de fazer comparações entre as boas práticas da imprensa francófona (no Le Monde ou na televisão pública gaulesa) e as que só se podem lamentar na nossa. O artigo «Inconvenientes de uma conceção», que está no «Público» desta segunda-feira volta a ser de leitura obrigatória como sempre acontece com os textos do autor.
O desespero em agarrarem-se a uma qualquer tábua de salvação levam as direções editoriais dos diversos meios de comunicação social a serem subservientes perante quem sabem serem os seus donos e privilegiando o que julgam ser mais bombástico nem que isso signifique tornarem-se idiotas úteis dos  populistas na estratégia de congregarem apoios nos que, sabendo muito pouco, estão despojados dos argumentos para exercitarem o saudável hábito de questionarem as certezas dos xenófobos e demais ultraconservadores. Não deixando de ser urgente uma imprensa alternativa, capaz de furar o cerco imposto por quantos a querem silencia-la.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Alguma razão nos queixumes de quatro generais


Quatro generais sentiram-se assustados com a irrelevância progressiva das Forças Armadas e encontraram nessa insatisfação um bom argumento para espicaçar a conflitualidade entre Marcelo Rebelo de Sousa e o governo decidindo enviar ao primeiro uma missiva a solicitar-lhe intervenção. Ao mesmo tempo soube-se que os concursos de recrutamento, recentemente abertos, primaram pela indiferença de quantos poderiam estar interessados em vestir a farda.
Quanto aos generais Marcelo passou-lhes ao largo de fininho aludindo a uma atitude coletiva de desinteresse dos portugueses pelos assuntos e oportunidades das carreira militares. E não lhes deu troco relativamente ao ensejo de criticar o governo, tanto mais que sabe importantes os votos dos eleitores socialistas que, hélas!, continuam a considera-lo presidenciável. Mas mais eloquente é essa indiferença dos jovens relativamente às Forças Armadas. Será de estranhar que, depois das notícias sobre a morte de alguns deles em exercícios militares, que relevaram do sadismo dos instrutores, ainda haja quem se arrisque em seguir-lhes as pisadas? E que futuro pode esperar um jovem depois de sucessivas comissões até passar à reserva quando outra alternativa de sustento não encontra que não seja a de integrar as diversas polícias, insuficientemente remuneradas e infiltradas de gente pouco recomendável?
Em tempos idos, e olhando para exemplos como os da Suíça ou Costa Rica, diria que as Forças Armadas são um vertedouro de dinheiro improdutivo, que seria melhor aplicado nos investimentos do Estado na saúde ou na educação. Mas isso seria numa conjuntura ideal, que, atualmente, não justifica rebate pacifista. Hoje há na Espanha um partido fascista, que faz cartazes a nela integrar o território português, demonstrando que as conhecidas ambições expansionistas de Franco continuam a ter inquietantes herdeiros. Há, igualmente, a necessidade de satisfazer as solicitações da comunidade internacional, sobretudo da ONU, para integrar militares portugueses nas suas missões em África ou na Ásia. Importa manter o controlo do espaço aéreo fazendo-o corresponder rigorosamente ao traçado das nossas fronteiras terrestres e marítimas. E há, sobretudo, a relevância estratégica de assegurar uma soberania muito ativa na importante área marítima reconhecida internacionalmente como pertencente a Portugal e onde os recursos naturais, incluindo os piscícolas, têm de ser defendidos da avidez alheia. Todos esses factos legitimam as preocupações dos quatro generais conquanto despojadas da intenção intriguista, que lhes pareceu motivar a tomada de posição. Mas as Forças Armadas, para além de esbanjarem verbas na anacrónica contribuição para a NATO, também devem ser repensadas de forma diversa da tradicional em que cada oficial tem de comandar diversos sargentos, que por seu lado exigem números mais alargados de cabos e ainda maior vastidão de recrutas. Se a realidade já demonstrou a impossibilidade de manter essa visão cristalizada das Forças Armadas importa que elas se dotem, sobretudo de oficiais com especializações consonantes com as importantes missões a serem-lhes confiadas, modernizando-se para constituírem instituições viradas para o futuro.