quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A campanha de medo que o Covid-19 potencia


A tese é, no mínimo, pertinente e descreve-se mais ou menos assim: em 11 de novembro de 2001 o ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque suscitou um tal sobressalto coletivo, que a Casa Branca encontrou escassas resistências para aquilo que não conseguira fazer por não ter justificações convincentes: a redistribuição dos campos de petróleo do Médio Oriente pelos interesses financeiros de que se sabia ser provedora. Bastou agitar vigorosamente a bandeira da defesa do Ocidente contra o terrorismo islâmico (mesmo nunca tendo surgido provas do seu financiamento por Saddam Hussein!) para avançar com a ocupação do Iraque. O que depois ocorreu com a Líbia de Kadhafi ou se passa atualmente com o Irão dos aiatolas inscreve-se na mesma lógica em que as grandes empresas petrolíferas americanas, inglesas e francesas viram os seus objetivos secundados pelas intervenções políticas dos sucessivos ocupantes da Casa Branca e pelos seus moços de recados, chamassem-se eles Tony Blair ou Nicolas Sarkozy.
Segundo um ensaio publicado em 2015 por Patrick Boucheron, Corey Robin e Renaud Payre - «L’exercice de la peur» - hoje citado por Manuel Loff na crónica no «Público»  os poderes políticos e os que com eles se concertam (ou mesmo os manobram na sombra) concluíram quão eficiente pode ser o exercício do medo na preservação e consolidação das relações de forças entre as diversas classes em conflito nesta fase crepuscular do capitalismo. Desapareceram os líderes que procuravam fazer-se amar pelos concidadãos, atirando-lhes areia para os olhos com falácias do tipo «comprando ações todos podem ser patrões das grande s empresas» ou «constituir um enorme benefício para todos que as empresas públicas sejam privatizadas, porque serão melhor geridas e propiciarão preços mais baratos». Hoje, cientes de já sobrarem poucos ingénuos para acreditarem nessas histórias da carochinha, tais poderes procuram congelar protestos fazendo-se temer - e isso é que fazem os Orbans, os Erdogans e outros políticos do seu calibre - ou, mais habilidosamente, empolando tudo quanto possa criar um circo mediático, que erradique da ordem do dia todos os acontecimentos paralelos suscetíveis de lhes suscitarem sobressaltos.
A crise com o Covid-19 revelou-se particularmente oportuna, porque teve origem na China e alimentou todas as campanhas anteriormente em curso contra o regime de Pequim, não tanto pelo seu suposto totalitarismo (embora ele constitua uma boa fachada para os verdadeiros objetivos dos seus promotores), mas porque esses interesses financeiros ocidentais temem ver-se secundarizados pelos que ascendem imparavelmente do Oriente. A promoção do ódio aos chineses, potenciando imprevisíveis reações xenófobas, constituiu uma oportunidade, que não foi desperdiçada.
Há, porém, a outra constatação possível a retirar de todo este caso: apesar de não ter a dimensão das gripes anuais, que se revelam bem mais perigosas, quer quanto ao número de infetados, quer quantos aos mortos, que provoca, o Covid-19 coloca os cidadãos ocidentais perante a incontornabilidade do medo, que veem estimulado por altifalantes permanentes.
Ora é esse medo, que os poderes procuram incrustar aprofundadamente no imaginário coletivo. Porque quem o tem mais facilmente se deixa arrastar para falsas soluções como o ódio ao Outro a pretexto dos refugiados ou a catarse das suas insatisfações mediante a associação dos políticos aos corruptos (dela isentando os venturados meninos de coro, que os enganam quanto à sua «diferença»).
Esses poderes, que podem tomar muitos nomes (complexo militar-industrial, grupo de Bildeberg e tantos outros) têm uma característica comum: todos eles estão ligados aos tais 1% de detentores da riqueza, que querem manietar a vontade dos outros 99% em contestar-lhes a ganância. E por isso não se privam de recorrer ao medo (hoje do Covid-19, amanhã de uma qualquer outra «ameaça aos ocidentais»), que adie o inevitável: que atrás de tempos, tempos vêm, outros tempos (que não os seus!) hão-de vir.

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