quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Gente desesperadamente só

A morte terá sido tão lenta a chegar quanto silenciosa: quando a polícia japonesa entrou num apartamento ocupada pelos três elementos já idosos de uma família, já os corpos estavam em processo de lenta mumificação depois de exalarem o derradeiro suspiro.
A causa? A FOME! Abandonados pelo exíguo sistema de Segurança Social, que os ignorava, esses velhos esgotaram os últimos alimentos e aguardaram  a acção da natureza. Sem se revoltaram para o exterior donde não esperavam qualquer tipo de apoio.
Anda-se a morrer muito e de forma muito solitária por esse mundo fora.
Há dias fora o emigrante luso abandonado numa valeta belga. Mas nem sequer nos chegam notícias de tantos sem abrigo a quem o frio e a fome vai adiantando o inexorável fim.
O que diz muito da falta de humanismo nesta sociedade virada para a exploração da miséria alheia como forma de um número ínfimo de privilegiados usufruírem obscenas mordomias cuja legitimidade nem sequer questionam nas suas consciências.
Dias atrás havia quem se surpreendesse com o número invulgarmente elevado de óbitos de idosos em comparação com estatísticas anteriores. E um “especialista” inglês veio a uma universidade portuguesa anunciar uma evidente lapalissada: que a crise actual  está a reduzir a esperança de vida a quem a poderia ter bem mais dilatada. Mas, se os mesmos jornais anunciam que já há imensos doentes crónicos a, por falta de recursos, prescindirem dos seus medicamentos e tratamentos para a diabetes, a hipertensão ou a depressão, é claro que tais dados estatísticos passam a fazer tanto sentido quanto o de existir gente desesperada, terrivelmente só, a desistir de tudo com o alívio de um sofrimento enfim terminado.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Os mitos sobre o Médio Oriente

São muitos os mitos sobre o Médio Oriente como se constata no livro de Fred Holliday, publicado pela Tinta da China e que os contabiliza num cento.
Da sua lenta leitura vale a pena aqui anotar algumas dessas mistificações porquanto elas nos impedem de uma perspectiva mais correcta sobre uma realidade, que nos pode atingir mesmo que de forma indirecta se se encaminhar para a agudização já tantas vezes ensaiada quer pelos falcões israelitas, quer pelos fundamentalistas islâmicos:
Todas as regiões, religiões e povos são, tal como os indivíduos, de certo modo únicos na sua origem e características, mas as características partilhadas com os outros são de uma escala incomparavelmente maior do que aquelas que nos distinguem. É por esta mesma razão que os estados, os povos e os demagogos de todos os quadrantes  tanto se esforçam por exagerar a sua singularidade, bem como a dos seus inimigos. (pág. 21)
Moral da História: por muito que queiram demonstrar o contrário, israelitas e palestinianos têm muito mais em comum do que a dissociá-los. A começar pelo respectivo humor, que não é atributo exclusivo dos judeus: os povos do Médio oriente são os menos susceptíveis, mais capazes de se rirem dos seus governantes, dos seus vizinhos e de si mesmos, do que os habitantes de qualquer outra parte do mundo. (pág. 23)
Outro mito a refutar é a de imperar a barbárie naquela região: a história da Europa do século XX, bem como a brutalidade imposta por alguns dos dirigentes aos seus povos, ultrapassa em muito tudo o que podemos observar no Médio Oriente (pág. 26)
E essa superioridade bélica do Ocidente em relação ao Médio oriente mantém-se actual: nos tempos modernos não houve nenhum estado europeu que fizesse das boas relações com o mundo árabe ou muçulmano uma prioridade especial e todos tentaram tirar partido dele, territorial ou outro. (pág. 30)
Assim como a relação com os judeus por parte dos árabes: não restam quaisquer dúvidas de que o historial das atitudes das sociedades muçulmanas para com os judeus ao longo do último milénio é de longe mais positivo do que o da Europa, em particular no século XX. (pág., 35)
Mas os próprios judeus andam a alimentar-se de um mito sem fundamento: tal como o árabe, o nacionalismo e a religião hebraicos alimentam uma ficção linguística. A primeira objecção à ideia defendida pelos judeus nacionalistas de que estão a recuperar a língua hebraica é que, muito antes da destruição do Segundo Templo e da dispersão dos judeus em 70 a.C., o hebraico já tinha desaparecido enquanto língua falada na Palestina, onde foi substituído pelo aramaico, uma língua semita aparentada e que era falada por Jesus Cristo; esta língua sobrevive até hoje em algumas aldeias da Síria, a leste de Damasco.

Alguns mitos do Médio Oriente

São muitos os mitos sobre o Médio Oriente como se constata no livro de Fred Holliday, publicado pela Tinta da China e que os contabiliza num cento.


Da sua lenta leitura vale a pena aqui anotar algumas dessas mistificações porquanto elas nos impedem de uma perspectiva mais correcta sobre uma realidade, que nos pode atingir mesmo que de forma indirecta se se encaminhar para a agudização já tantas vezes ensaiada quer pelos falcões israelitas, quer pelos fundamentalistas islâmicos:

Todas as regiões, religiões e povos são, tal como os indivíduos, de certo modo únicos na sua origem e características, mas as características partilhadas com os outros são de uma escala incomparavelmente maior do que aquelas que nos distinguem. É por esta mesma razão que os estados, os povos e os demagogos de todos os quadrantes tanto se esforçam por exagerar a sua singularidade, bem como a dos seus inimigos. (pág. 21)

Moral da História: por muito que queiram demonstrar o contrário, israelitas e palestinianos têm muito mais em comum do que a dissociá-los. A começar pelo respectivo humor, que não é atributo exclusivo dos judeus: os povos do Médio oriente são os menos susceptíveis, mais capazes de se rirem dos seus governantes, dos seus vizinhos e de si mesmos, do que os habitantes de qualquer outra parte do mundo. (pág. 23)

Outro mito a refutar é a de imperar a barbárie naquela região: a história da Europa do século XX, bem como a brutalidade imposta por alguns dos dirigentes aos seus povos, ultrapassa em muito tudo o que podemos observar no Médio Oriente (pág. 26)

E essa superioridade bélica do Ocidente em relação ao Médio oriente mantém-se actual: nos tempos modernos não houve nenhum estado europeu que fizesse das boas relações com o mundo árabe ou muçulmano uma prioridade especial e todos tentaram tirar partido dele, territorial ou outro. (pág. 30)

Assim como a relação com os judeus por parte dos árabes: não restam quaisquer dúvidas de que o historial das atitudes das sociedades muçulmanas para com os judeus ao longo do último milénio é de longe mais positivo do que o da Europa, em particular no século XX. (pág., 35)

Mas os próprios judeus andam a alimentar-se de um mito sem fundamento: tal como o árabe, o nacionalismo e a religião hebraicos alimentam uma ficção linguística. A primeira objecção à ideia defendida pelos judeus nacionalistas de que estão a recuperar a língua hebraica é que, muito antes da destruição do Segundo Templo e da dispersão dos judeus em 70 a.C., o hebraico já tinha desaparecido enquanto língua falada na Palestina, onde foi substituído pelo aramaico, uma língua semita aparentada e que era falada por Jesus Cristo; esta língua sobrevive até hoje em algumas aldeias da Síria, a leste de Damasco.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Atrás de tempos, tempos virão!

Numa semana em que Cavaco Silva arranjou uma fraca justificação para não enfrentar as vaias dos alunos da Escola António Arroio e em que Passos Coelho teve de ouvir as vaias de quem o recebeu na Feira do Queijo em Gouveia, não se pode dizer que os jornais não vão reflectindo o estado das coisas e poupem nos conselhos para que o Governo arrepie caminho e tome outra direcção, que não esta, de completa submissão aos ditames da troika, responsável pela recessão económica do país e pelo aumento do desemprego.
Tomando como exemplo o «Expresso» deste fim-de-semana, nele encontramos três colunistas, que, de forma diversa, se sintonizam nessa posição. Assim, Miguel Sousa Tavares lembra a alternativa mais inteligente nesta altura: Nos Estados Unidos, Obama começou a subir nas sondagens assim que os números confirmaram dois trimestres consecutivos de subida da taxa de emprego. Mas os alemães estão furiosos com Obama: em lugar de seguir uma política de austeridade pura e dura, como a Europa que Berlim comanda, eles estão a injectar dinheiro na economia -  e a começar a ter resultados.
Por seu lado Nicolau Santos contesta a teimosia ideológica do Governo que agarra-se às suas crenças ideológicas e não quer ver as evidências. Só que quando se expulsa a realidade pela janela, ela entra a galope pela porta  - queira ou não o Governo agarrado à sua receita de empobrecermos para nos salvarmos.
Finalmente, com Fernando Madrinha, temos por tema a insensibilidade social do Governo, que não leva a sério os dramas humanos, que vai agudizando: o que mais surpreende e choca, por desnecessária e evitável, é a arte dos actuais governantes, ou a sua frieza tecnocrática, para fazerem sentir aos cidadãos que são dispensáveis e estão a mais no seu próprio país.
Um Governo com esta atitude não pode contar por muito mais tempo com a compreensão que, humildemente, devia pedir aos portugueses todos os dias.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Desemprego e apoios estúpidos a islamistas

Continua o brilharete de Passos Coelho: conseguiu bater o record histórico de desemprego com um total de mais de um milhão e duzentas mil pessoas desempregadas. Com duzentas e cinquenta mil a viverem esse drama há mais de dois anos e os jovens a excederem um terço dos que procuram emprego.
Admiram-se depois que, em Janeiro, tenha acontecido a maior baixa de natalidade de nascimentos alguma vez verificada desde que há estatísticas credíveis? Ou seja menos 750 do que no ano passado, quando já esse decréscimo atingiu valores limite.
***
O Ocidente continua apostado em repetir na Síria os erros já cometidos na Tunísia, no Egipto ou na Líbia, com cujas revoltas se entusiasmou, mas aonde o islamismo fundamentalista ganha terreno inquietante.
A propósito da Líbia, o pós-Kadhafi está a ser um pesadelo para a maioria dos seus habitantes. Comenta a Amnistia Internacional: há um ano os líbios arriscaram a vida para exigirem justiça. Hoje as suas esperanças são postas em risco por milícias armadas sem rei nem roque que espezinham os direitos humanos com total impunidade.
Não deveriam os democratas europeus ser julgados em Haia por contribuírem tão tenazmente para a negação dos Direitos Humanos a tantos milhares de pessoas aterrorizadas pelas hordas bárbaras que as violentam?


Filme: DE GARIBALDI À BERLUSCONI DE ENRICO CERASUELO (2011) - cont.

Acabada a Segunda Guerra Mundial a Itália está devastada, mas respira um entusiasmante clima de liberdade, com um referendo a enterrar de vez a Monarquia, substituindo-a pela República.
Entre as instituições em escombros ,devido aos bombardeamentos, conta-se o La Scala, mas a grande arte do pós-guerra não se focaliza na música, mas no cinema, aonde o neo-realismo será referência mundial com filmes como «O Ladrão de Bicicletas» de De Sica.
Ao contrário de Mussolini, que tinha uma imponente presença física, os políticos do pós-guerra (De Gaspieri, Togliatti, Amalfa, Almirante) serão presenças sóbrias, dando corpo a ideias, mais do que impondo-as pela sua expressão gestual.
As mulheres ganham direitos de cidadania, podendo ser eleitas deputadas, como sucede com vinte e uma delas na primeira legislatura em liberdade.
Mas a violência já cresce à medida das tensões da Guerra Fria: quando, em 1947, a esquerda ganha as eleições regionais da Sicília, a Máfia (doravante aliada prestimosa da Democracia Cristã em particular e da Direita em geral) reage com um massacre em que morrem sete pessoas. E, no ano seguinte, apesar de De Gasperi, à frente da Democracia Cristã, ganhar as legislativas, não evita o grande apoio eleitoral aos comunistas que contam, então, com mais militantes do que o próprio Partido Comunista da União Soviética.
Os anos seguintes são os do boom industrial no Norte, com Turim a tornar-se a capital do automóvel com a Fiat. Dez milhões de italianos emigram do Sul para se proletarizarem nessas fábricas, apesar de serem objecto de discriminação racial, que chega a dificultar-lhes a possibilidade de arrendarem alojamento. Mas a identidade antropológica italiana vai-se fortalecendo na miscigenação decorrente. Outro factor de solidificação dessa identidade é a televisão e o consumismo à americana, apoiado no Plano Marshall.
Quando a Itália unificada comemora os cem anos de existência, em 1961, ela já ascendera à condição de quinta nação mais industrializada a nível mundial. Mas a Igreja continuava a deter um poder enorme, sufocando as aspirações laicizantes dos seus intelectuais.
Ainda assim, a Igreja sofre uma enorme derrota em 1974, quando um referendo aprova a legalização do divórcio.
Mas, nesse mesmo ano a extrema-direita inicia em Brescia uma campanha de atentados terroristas que, somados aos das Brigadas Vermelhas, mantém a Itália a ferro e fogo durante uma quinzena de anos.
Essa absurda violência terrorista, que impulsiona o desejo de segurança, e as televisões privadas apostadas na alienação mentecapta dos seus espectadores diminui as pulsões militantes ainda existentes e começa a emergir a influência de Silvio Berlusconi, então apoiante entusiasmado de Bettino Craxi, o dirigente socialista que sonha interpor-se na rivalidade histórica entre democratas cristãos e comunistas
A classe política muda, sobretudo quando os partidos tradicionais desaparecem devido à investigação aos seus financiamentos irregulares. É perante essa fragilização do Estado, que a Máfia não hesita em assassinar dois dos principais juízes anti-corrupção: Falconi e Borcellini.
De Palermo a Milão tudo muda e a etapa seguinte é a da Segunda República, que comporta fenómenos inquietantes como o separatismo populista da Liga do Norte e as sucessivas eleições de Berlusconi para primeiro-ministro, apesar das suspeitas tantas vezes confirmadas quanto às suas ligações à Máfia, à forma como acumulou tão apreciável  fortuna ou à sua turbulenta vida privada.
Cento e cinquenta anos sobre a sua unificação a Itália ainda mantém irresolúveis muitos dos seus problemas identitários e suporta a influência da Igreja Católica, que insiste no retrocesso civilizacional, que nunca deixou de querer impor...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Loucura à solta

O país ficou impressionado com o crime de Beja em que um homem matou a mulher, a filha e a neta para, nas suas palavras, as “poupar” ao sofrimento iminente de perderem a casa onde viviam.
Como de costume nestas ocasiões ergueram-se os histéricos do costume, preparados para o lincharem publicamente sem julgamento. Esquecidos de que se esse homem foi o executor do crime, os seus mandantes estão em Lisboa, em Belém e em São Bento, aonde vão dirigindo políticas irremediavelmente orientadas para a criação de enormes desesperos em quem vê perdidos os anéis, os dedos, e já não sabe como sequer angariar a própria sobrevivência.
Perante governos, que fomentam a desigualdade social com o enriquecimento da sua base social de apoio e o empobrecimento acelerado da maioria dos cidadãos, os mais desprotegidos têm três alternativas: a de emigrarem como propuseram Passos Coelho, Relvas e um obscuro secretário de Estado, para descobrirem que os becos não se situam apenas cá, mas também nesses falsos eldorados. A de se suicidarem como silenciosamente tantos vão fazendo. Ou a de matarem vítimas inocentes, que sofrem os efeitos dos seus descontrolados impulsos. ~
Esta última hipótese não é tão rara quanto se supõe: uns anos atrás um suíço da alta burguesia não quis confessar a sua queda em desgraça, continuando a sair para o emprego todas as manhãs e perdurando a ilusão, enquanto lhe durou o dinheiro, do seu estatuto junto da comunidade em que vivia. Até ele se esgotar e não lhe restar outra alternativa que não fosse matar a família para lhes sonegar a verdadeira realidade do seu fracasso.
Patético, pois, espectáculo o das hordas furiosas a invectivarem o assassino. As suas mãos estão manchadas de sangue. Mas as de Passos Coelho ou de Cavaco não o estão menos, decididos que estão a executar políticas, que mergulham no desespero quem delas padece os mais gravosos efeitos…
E referenciando Cavaco vale a pena constatar o susto por que passou esta manhã: preparava-se para comparecer numa cerimónia oficial na Escola António Arroio, quando teve de retroceder porque uma manifestação estudantil ameaçava mergulhá-lo no caos da insatisfação estudantil.
Fenómeno curioso este em que o Chefe de Estado já perde a áurea do seu estatuto e foge a sete pés do cheiro a Revolução!
Efeitos de uma  crise, que já exaspera por vê-la combatida por Merkel, Sarkozy e seus capangas com receitas, que não mostram qualquer virtude regeneradora. Pelo contrário: cada tentativa de repetir a mesma receita  conduz a resultados ainda piores.
Se não fossem tão estupidamente arrogantes os dirigentes europeus deveriam ter presente as palavras de Albert Einstein, que dizia loucura é fazer repetidamente a mesma coisa e esperar resultados diferentes de cada vez...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Filme: DE GARIBALDI À BERLUSCONI DE ENRICO CERASUELO (2011)

Como se pode explicar o fenómeno berlusconiano, -felizmente já remetido para o caixote do lixo da História, - mas passível de regressar sob uma outra qualquer máscara? A questão está implícita na visão do documentário de Cerasuelo, que teve como motivo inspirador os cento e cinquenta anos de existência da Itália como entidade nacional resultante da unificação de toda a Península em que se situa e das ilhas a ela adjacentes. E também uma exposição dedicada à mesma efeméride montada em Turim e resultante do esforço da universidade local.
«Quem somos e porque devemos estar juntos?» questiona-se o realizador logo de início. Na realidade a língua já constituía um factor determinante para essa unificação, conseguida, porém, graças a muito sangue vertido.
Antes da revolta garibaldiana, a Áustria ocupava quase toda a Península à excepção do Reino de Sabóia, que incluía também o Piemonte, a Sardenha, Nice e Génova.
É desse reino e ao som da música de Verdi, que Garibaldi enceta a sua campanha dos Mil partindo de Génova para libertar a Sicília do jugo dos Bourbons.
Desembarcados em Marsala depressa chegam a Palermo, cuja libertação credibiliza a dinâmica transformadora desse esforço nacionalista. Mas, depressa se notam os equívocos do que se julgava constituir uma revolução progressista: não só a ideologia republicana das forças de Garibaldi cede ao respeito pela tutela da monarquia de Sabóia, que levará ao trono da Roma libertada, como os camponeses sicilianos sofrem em Bronti a repressão violenta depois de se revoltarem contra os latifundiários.
Quais terão sido os derradeiros pensamentos dos sete camponeses aí fuzilados perante os uniformes, que haviam saudado como heróis da sua emancipação?
Compreendia-se, à custa de muito sangue, que o objectivo não era libertar os camponeses da exploração violenta a que eram sujeitos, mas dar à Península Itálica um regime unificado em defesa dos seus mais endinheirados súbditos. Daí que os explorados optassem pela emigração massiva para a América do Norte e para a América do Sul, aonde despertavam para a sensação de pertença a uma origem geográfica que nada lhes dizia, quando nela habitavam.
Em 1861, logo após a unificação, os italianos eram 26 milhões. No século seguinte, ou seja entre 1870 e 1970,  seriam 29 milhões os que recorreriam à emigração enquanto meio de escaparem à fome e à miséria.
O falso progressismo da revolução garibaldiana também se revelou na timidez com que se relacionou com o Vaticano.  Para o Papa e sua corte a divisão da Itália era bastante mais interessante do que a relação com um poder forte como o que se poderia esperar quando os revolucionários entraram em Roma sem dispararem um tiro. Mas o novo poder empossado pelo Rei Victor Emmanuel apresta-se a recuar quando a Igreja contesta o primado da laicidade sobre a religião ao conferir como exclusivamente reconhecidos os casamentos contraídos perante as entidades administrativas por si designadas. Perante a reacção papal, o novo Governo obriga o matrimónio civil a imitar o religioso num dos seus preceitos mais conservadores: a indissolubilidade do seu vínculo em defesa dos valores da família.
Nos anos seguintes a realidade italiana vai-se estabelecer sem grande entusiasmo até que uma terrível tragédia irá contribuir para o fortalecimento dos vínculos patrióticos: a participação italiana na I Grande Guerra, que implica um saldo de seiscentos mil mortos e de quatrocentos mil prisioneiros. Mas, em compensação, nas trincheiras estabelecem-se solidariedades entre jovens militares vindos de toda a Península Italiana, que sentem a empatia de pertença a uma mesma realidade política, social e ideológica.
No final da guerra ainda subsiste no operariado alguma intenção de imitar os seus congéneres soviéticos e algumas fábricas são ocupadas, mas o poeta D’Annunzio cria o clima cultural para que emerja o fascismo de Mussolini como regime apostado em defender a mística italiana mediante a instrumentalização da ilusão da sua unidade.
Ultranacionalista e militarista, Mussolini não hesitará em invadir a Abissínia para que a Itália também se possa vangloriar do seu Império africano a partir de 1935, altura em que se detectam os seus avisos contra as ameaças judaicas, que fundamentarão a entrada na II Guerra ao lado dos nazis alemães.
Morrerão muitos milhares de italianos em França, no Norte de África ou na Frente Russa., mas quando é afastado do poder em 1943, Mussolini já só era um fantoche dos interesses de Hitler, que não hesita em resgatá-lo para lhe conferir uma patética sensação de poder na tenebrosa República de Saló.
A sua morte e exposição do corpo em Milão simboliza a libertação definitiva da Itália e a entrada em força no prometedor mundo do pós guerra tão ambicioso em oportunidades e potencialidades...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Uma série documental desonesta sobre a queda dos regimes comunistas

Recentemente o canal franco-alemão ARTE andou a emitir uma série documental intitulada «Adeus Camaradas» cujo tema era o fim da era comunista nos países do leste-europeu.
À partida o projecto apresentava-se aliciante pela possibilidade de se poder compreender o desmoronamento de um verdadeiro império político, como se de um castelo de cartas se tratasse. E, no entanto, durante sete décadas ele suscitara a admiração de milhões de pessoas, que nele tinham vislumbrado a alternativa ao quotidiano miserável por que passavam a ocidente.
Importava, pois, reaferir as ideias quanto à altura em que a esperança inicial se desvanecera e o campo socialista dera argumentos ao capitalismo ocidental para dele transmitir a versão totalitária e de penúria para quantos ali viviam. Aquela que conduzira ao fim de um tempo histórico de excepção através de uma banal declaração de Gorbatchev lida no serviço informativo da televisão soviética.
Trata-se de uma análise a que a esquerda não pode fugir já que se vive uma nova crise capitalista, que poderá contribuir para uma definitiva eliminação de um sistema político e económico eivado de gravosas injustiças e de distribuição obscenamente desigual da riqueza colectivamente produzida. E sem que a alternativa ideológica esteja garantida por se lhe associar os gulags estalinistas e a repressão dos dissidentes...
Mas para tal análise os seis episódios de Andrei Nekrasov pouco contribuirão, porque são de uma desonestidade intelectual óbvia: parte-se do principio de que do lado de lá da Cortina de Ferro tudo era mau e do lado de cá vivia-se no melhor dos mundos. E só testemunha nesta abordagem do período histórico entre 1975 e a actualidade quem partilha dessa perspectiva maniqueísta dos factos, conferindo-lhe uma distorção ideologicamente muito vincada. Nesse sentido «Adeus Camaradas» é uma série de péssima qualidade por não tentar sequer suscitar o contraditório entre quem critica os antigos regimes de leste e os que os continuam a defender. Mais: chega a ser irritante a postura da filha do realizador, que se coloca arrogantemente perante a câmara a quase tratá-lo de mentecapto por ter acreditado nas utopias alcançáveis nos amanhãs que cantam.
Bem argumenta Nekrasov com o fascínio pelo feito de Gagarine, quando era ainda uma criança, ou a sensação de se possuir influência em metade do planeta, quando a América vivia a derrota do Vietname e o escândalo Watergate.
Em 1975 vivia-se de facto o apogeu da influência geopolítica do regime soviético, apesar do tempo de antena dado pelo Ocidente às palavras de Soljenitsine, um anticomunista primário, que conhecera os incómodos dos arquipélagos siberianos para onde Estaline enviara os opositores, a exemplo do que já os Czares faziam no século anterior.
Para exemplificar a contestação interna então existente Nekrasov dá importância a um terrorista checo, que fizera explodir à bomba a estátua do fundador da República Socialista do seu país e por isso mesmo condenado a nove anos de prisão.
Essa é apenas uma das muitas entrevistas aos anticomunistas, que se apresentam perante as câmaras como se heróis fossem e não tivessem, de facto, contribuído para o agravamento progressivo das condições de vida e das desigualdades entre ricos e pobres nos países ocidentais verificados desde a queda do muro de Berlim e agora culminados na verdadeira guerra protagonizada pelos oligarcas financeiros contra a maioria das populações europeias de acordo com os ditames de Angela Merkel.
Na sua forma mais benigna esses testemunhos revelam a ânsia de então se conquistar o melhor dos dois mundos: a qualidade consumista do ocidente com os direitos sociais reconhecidos a leste.
Na realidade a maioria dos cidadãos leste-europeus faziam a sua vida sem contestarem o regime, menosprezando os grupos rock e os Vaclav Havel, que iam porém fazendo o tirocínio para o futuro em que o seu arrivismo seria premiado.
Uma razão plausível para a queda do Império Soviético poderá ter sido a decisão de invasão do Afeganistão, verificada a 27 de Dezembro de 1979, para impedir o regime de esquerda aí instalado de recuar nos seus propósitos mais progressistas e apoiá-lo na luta contra o terrorismo islâmico então aí a emergir com o apoio da CIA.
Explorada pela Casa Branca, aonde até pontificava homem decente como presidente (Jimmy Carter), essa invasão possibilitaria o boicote de muitos países tutelados pelo Pentágono aos Jogos Olímpicos de Moscovo.
A vitória de Reagan só iria agravar a situação: anticomunista primário, que se distinguira como bufo do sinistro senador McCarthy e, como tal, responsável directo pela perseguição e morte de milhares de pessoas a quem não se concedia o direito de pensarem pelas suas próprias cabeças, ele propiciaria as condições financeiras necessárias para acabar com o que designava como «Império do Mal».
O documentário não aborda o investimento da CIA no apoio aos «dissidentes», que a imprensa ocidental promovia a valorosos combatentes sem mácula, nem os rios de dinheiro distribuídos aos Osamas Bin Ladens para derrotarem o Exército Vermelho no Afeganistão. Mesmo financiando dessa forma o surgimento da Al Qaeda. Ou a operação, que a História se encarregará de elucidar em que operários polacos liderados pelo oportunista Walesa irá promover a greve dos estaleiros navais de Gdansk.
Nessa altura, mostrando que a conspiração para eliminar os regimes comunistas tinha ramificações insuspeitas, acontece a estranha morte do Papa João Paulo I e a sua substituição pelo bispo polaco Woytila. Que não deixará de se imiscuir na política interna do seu país de origem.
Quando Brejnev morre e é substituído por Andropov, Reagan anda a congeminar uma milionária guerra das estrelas, que garanta óptimos negócios para os seus amigos da indústria de guerra, e suscite uma escalada aos armamentos, que se revelasse desastrosa para a frágil economia oriental.
Em Novembro de 1982, com a implantação de mísseis de um e de outro lado do Muro de Berlim, o apocalipse nuclear não parece hipótese desprovida de razão de ser...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tempos duros para a democracia

Uma das questões suscitadas pela presente crise em muitos comentadores é a possibilidade de redundar em situações de extrema gravidade, como o possam ser guerras ou imposição de ditaduras. A fundamentarem tais receios existem exemplos históricos, que parecem repetir-se quer nas causas, quer nas possíveis consequências de tanta instabilidade social.
Comentava Irene Pimentel numa entrevista dada ao «Jornal de Negócios», que, hoje, numa situação de crise da democracia, de crise financeira, pode haver a tendência para procurar a solução num ditador populista, demagógico, que chegue aqui a dizer que amanhã resolve tudo.
Sabendo-se que Hitler chegou ao poder por meio de eleições supostamente democráticas, e atendendo a outros exemplos recentes (Berlusconi na Itália, Orban na Hungria ou Putin na Rússia) tal hipótese ganha pertinência..
Uma sondagem recente demonstrava a apetência de muitos portugueses pela rendição de todo o país a formas de governação não democráticas. O que levava Leonel Moura a reconhecer no mesmo «Jornal de Negócios» que não deixa de ser sintomático que uma quantidade apreciável de cidadãos encare formas autoritárias de poder como uma solução viável para a presente situação.
No mesmo sentido iam as declarações de Luke Marsh no «Público»: (…) em tempo de crise, procuramos alguém que mantenha a estabilidade, queremos conforto emocional e não algo que provoque reviravoltas emocionais. E, nesse sentido, a direita é melhor a lidar com as emoções e os medos das pessoas, a fazer discursos que aludem ao que as pessoas querem e à forma como se vêem a si próprias.
Para a esquerda abre-se um tempo de grandes desafios, em que se deverá superar a si mesma, reinventando-se e criando novas formas de credibilizar as suas propostas. Porque, segundo Wolfgang Merkel (que nada tem a ver com a chanceler alemã), a democracia está a enfrentar um grande problema, que é o progressivo afastamento das classes trabalhadoras do processo democrático. Deixam de votar, deixam de estar sindicalizados ou de se filiarem em partidos políticos. Com o declínio da participação eleitoral, as classes médias tornam-se cada vez mais predominantes e as classes mais baixas desaparecem.