Recentemente o canal franco-alemão ARTE andou a emitir uma série documental intitulada «Adeus Camaradas» cujo tema era o fim da era comunista nos países do leste-europeu.
À partida o projecto apresentava-se aliciante pela possibilidade de se poder compreender o desmoronamento de um verdadeiro império político, como se de um castelo de cartas se tratasse. E, no entanto, durante sete décadas ele suscitara a admiração de milhões de pessoas, que nele tinham vislumbrado a alternativa ao quotidiano miserável por que passavam a ocidente.
Importava, pois, reaferir as ideias quanto à altura em que a esperança inicial se desvanecera e o campo socialista dera argumentos ao capitalismo ocidental para dele transmitir a versão totalitária e de penúria para quantos ali viviam. Aquela que conduzira ao fim de um tempo histórico de excepção através de uma banal declaração de Gorbatchev lida no serviço informativo da televisão soviética.
Trata-se de uma análise a que a esquerda não pode fugir já que se vive uma nova crise capitalista, que poderá contribuir para uma definitiva eliminação de um sistema político e económico eivado de gravosas injustiças e de distribuição obscenamente desigual da riqueza colectivamente produzida. E sem que a alternativa ideológica esteja garantida por se lhe associar os gulags estalinistas e a repressão dos dissidentes...
Mas para tal análise os seis episódios de Andrei Nekrasov pouco contribuirão, porque são de uma desonestidade intelectual óbvia: parte-se do principio de que do lado de lá da Cortina de Ferro tudo era mau e do lado de cá vivia-se no melhor dos mundos. E só testemunha nesta abordagem do período histórico entre 1975 e a actualidade quem partilha dessa perspectiva maniqueísta dos factos, conferindo-lhe uma distorção ideologicamente muito vincada. Nesse sentido «Adeus Camaradas» é uma série de péssima qualidade por não tentar sequer suscitar o contraditório entre quem critica os antigos regimes de leste e os que os continuam a defender. Mais: chega a ser irritante a postura da filha do realizador, que se coloca arrogantemente perante a câmara a quase tratá-lo de mentecapto por ter acreditado nas utopias alcançáveis nos amanhãs que cantam.
Bem argumenta Nekrasov com o fascínio pelo feito de Gagarine, quando era ainda uma criança, ou a sensação de se possuir influência em metade do planeta, quando a América vivia a derrota do Vietname e o escândalo Watergate.
Em 1975 vivia-se de facto o apogeu da influência geopolítica do regime soviético, apesar do tempo de antena dado pelo Ocidente às palavras de Soljenitsine, um anticomunista primário, que conhecera os incómodos dos arquipélagos siberianos para onde Estaline enviara os opositores, a exemplo do que já os Czares faziam no século anterior.
Para exemplificar a contestação interna então existente Nekrasov dá importância a um terrorista checo, que fizera explodir à bomba a estátua do fundador da República Socialista do seu país e por isso mesmo condenado a nove anos de prisão.
Essa é apenas uma das muitas entrevistas aos anticomunistas, que se apresentam perante as câmaras como se heróis fossem e não tivessem, de facto, contribuído para o agravamento progressivo das condições de vida e das desigualdades entre ricos e pobres nos países ocidentais verificados desde a queda do muro de Berlim e agora culminados na verdadeira guerra protagonizada pelos oligarcas financeiros contra a maioria das populações europeias de acordo com os ditames de Angela Merkel.
Na sua forma mais benigna esses testemunhos revelam a ânsia de então se conquistar o melhor dos dois mundos: a qualidade consumista do ocidente com os direitos sociais reconhecidos a leste.
Na realidade a maioria dos cidadãos leste-europeus faziam a sua vida sem contestarem o regime, menosprezando os grupos rock e os Vaclav Havel, que iam porém fazendo o tirocínio para o futuro em que o seu arrivismo seria premiado.
Uma razão plausível para a queda do Império Soviético poderá ter sido a decisão de invasão do Afeganistão, verificada a 27 de Dezembro de 1979, para impedir o regime de esquerda aí instalado de recuar nos seus propósitos mais progressistas e apoiá-lo na luta contra o terrorismo islâmico então aí a emergir com o apoio da CIA.
Explorada pela Casa Branca, aonde até pontificava homem decente como presidente (Jimmy Carter), essa invasão possibilitaria o boicote de muitos países tutelados pelo Pentágono aos Jogos Olímpicos de Moscovo.
A vitória de Reagan só iria agravar a situação: anticomunista primário, que se distinguira como bufo do sinistro senador McCarthy e, como tal, responsável directo pela perseguição e morte de milhares de pessoas a quem não se concedia o direito de pensarem pelas suas próprias cabeças, ele propiciaria as condições financeiras necessárias para acabar com o que designava como «Império do Mal».
O documentário não aborda o investimento da CIA no apoio aos «dissidentes», que a imprensa ocidental promovia a valorosos combatentes sem mácula, nem os rios de dinheiro distribuídos aos Osamas Bin Ladens para derrotarem o Exército Vermelho no Afeganistão. Mesmo financiando dessa forma o surgimento da Al Qaeda. Ou a operação, que a História se encarregará de elucidar em que operários polacos liderados pelo oportunista Walesa irá promover a greve dos estaleiros navais de Gdansk.
Nessa altura, mostrando que a conspiração para eliminar os regimes comunistas tinha ramificações insuspeitas, acontece a estranha morte do Papa João Paulo I e a sua substituição pelo bispo polaco Woytila. Que não deixará de se imiscuir na política interna do seu país de origem.
Quando Brejnev morre e é substituído por Andropov, Reagan anda a congeminar uma milionária guerra das estrelas, que garanta óptimos negócios para os seus amigos da indústria de guerra, e suscite uma escalada aos armamentos, que se revelasse desastrosa para a frágil economia oriental.
Em Novembro de 1982, com a implantação de mísseis de um e de outro lado do Muro de Berlim, o apocalipse nuclear não parece hipótese desprovida de razão de ser...
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