sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Desventuras e disfarçadas humilhações

 

A "venturização" das direitas é evidente perante tudo quanto aconteceu com a dita Lei da Nacionalidade. Como Mariana Mortágua muito bem sublinhou, a lei obriga os candidatos à "honra" de serem portugueses a deterem conhecimentos ignorados por boa parte dos incultos apoiantes e até eleitos do Chega.

A Lei lá passou com todos os votos das direitas, incluindo o do tal partido da Madeira que, tal como Tózé Seguro, não quer ser de direita nem de esquerda, mas não engana quanto ao que vem quando chega a altura de se definir.

Contra essa venturização, que abrange aquele que Pedro Marques Lopes muito bem identifica como o delegado do Chega no governo de Montenegro - Leitão Amaro, autor de uma definição alternativa para a tese da "grande substituição" -, importa denunciar incessantemente. Não caindo no logro de quem incita a nada dizer, a ignorar, como se uma melga, por não lhe ligarmos, não nos picasse à sua vontade se não a esmagarmos antes.

E essa venturização encontra cúmplices insuspeitos. Marcelo voltou a falar sobre o Serviço Nacional de Saúde. O mesmo Marcelo que, como deputado, votou contra a sua criação. Décadas passadas, e no papel de Presidente da República - cargo em que só pede meças a Cavaco Silva como o pior que a democracia portuguesa tem conhecido -, permite-se agora perorar sobre o assunto sem pôr em causa a incompetência gritante da Ministra da Saúde.

Pior ainda: apela para aquilo que o ainda líder do PS tanto deseja. Sentar-se à mesa com o PSD para, em conjunto, continuarem a destruir aquilo que António Arnaut criou. É esta a "solução" que nos propõem: um pacto entre os dois partidos do arco do poder para acelerar o desmantelamento do SNS, disfarçado de consenso responsável.

A hipocrisia é tão evidente que chega a ser insultuosa. Quem votou contra a existência do SNS surge agora como guardião preocupado da sua sustentabilidade. E esta direção socialista, que deveria defendê-lo, prepara-se para negociar a sua rendição.

Entretanto, do outro lado do Atlântico, Trump foi à Ásia pedir batatinhas. Vendo-se em apuros por não ter os seus apoiantes cultivadores de soja a exportarem para a China e, ainda pior, a falta de terras raras a pôr em causa setores importantes da economia que lhe financiaram a campanha, lá teve de engolir o orgulho e suplicar ao presidente chinês.

Este, magnânimo, deu-lhas. A cena seria cómica se não fosse reveladora: o grande paladino do America First, o homem que prometeu dobrar a China, de joelhos a mendigar concessões comerciais.

A arrogância das tarifas e da guerra comercial esbarrou na realidade: os Estados Unidos dependem da China muito mais do que a retórica trumpista admite. E Xi Jinping sabe-o perfeitamente, concedendo o suficiente para humilhar Trump sem ceder nada de substancial.

Os cultivadores de soja e os magnatas da indústria tecnológica que financiaram a campanha ficam temporariamente satisfeitos. Mas a vassalagem económica dos EUA à China nunca foi tão evidente. 

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Sabujices, maroscas e outras tropelias

 

Os cartazes e as exaltações salazaristas do energúmeno que vai iludindo uns quantos crédulos quanto à ideia de a terra ser plana - ficando a parte de cima para os imaculados brancos com uma particular ganância pelo enriquecimento rápido e sem escrúpulos, sendo a de baixo para todos os outros, merecedores de aljubes e tarrafais, se não mesmo de câmaras de extermínio se forem ciganos ou bengalis - são uma afronta para quem os vê no espaço público.

É caso para sugerir à criatura que prontamente se suicide: na sua alegada crença católica, mitigaria imediatamente as saudades, sentando-se ao lado de São Pedro com o botas de Santa Comba no outro lado. Se houve gente suficientemente tola para avançar nos campos de batalha com uma chave e a perspetiva de logo se ir deleitar com não sei quantas virgens, não deveria o André atalhar o encontro com o seu ídolo?

Na mesma linha de quem recusa ser o que não é, o Tózé reafirma na entrevista ao Público o que dele já sabíamos: a ânsia em não ser confundido com a esquerda. Como é que alguém poderia ser quem não é? A questão persiste sem resposta convincente.

Entretanto, do outro lado do Atlântico, o marado da motosserra ganhou as eleições menos participadas da Argentina desde 1983. Por ora, os que perderam empregos e procuram sobreviver de biscates alheiam-se dos mais que justificados protestos. Mas estando a situação destinada a piorar ainda mais, só se espera que acordem e deem ao amigo de Trump o trato que ele desde o início merece.

Há, porém, sinais esperançosos noutras paragens. A geração Z de vários países do Terceiro Mundo - Nepal, Madagascar, Peru, Marrocos - mostra ter visto extravasado o copo da sua paciência e dispõe-se a vir para a rua exigir outra forma de resolver os seus problemas. Só falta contagiarem, pelo exemplo, os que têm a mesma idade nas sociedades ditas desenvolvidas do ocidente, também eles a contas com becos sem saída de que têm de se livrar.

Por cá há indícios de como isso começa a verificar-se: a luta contra o aumento das propinas parece estar a suscitar crescente mobilização. Resta saber se terá fôlego para se transformar em movimento mais amplo.

E,  a finalizar, será de acompanhar atentamente as ações do secretário de Estado Bernardo Correia, que ganhava mais de 44 mil euros mensais na Google e foi para o governo auferir 90 mil por ano. Se calhar os procuradores, que tão lestos se mostraram a espiolhar a vida e os contactos de João Galamba com os seus amigos e conhecidos durante quatro anos, encontrarão no referido "governante" fartos motivos para desconfiarem de marosca. Afinal, ele tutela a área que poderia e deveria aumentar a regulamentação sobre as tecnológicas e, pela inação, só poderá estar a fazer-lhes o frete. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Não precisamos de um PS neoliberal

 

Um artigo de Graça Castanheira (Público, 26 de outubro) sobre a Terceira Via ajuda a compreender porque rejeito o voto em António José Seguro para as presidenciais e a liderança de José Luís Carneiro no Partido Socialista representa uma traição ao pensamento de Mário Soares.

Nos anos 90, Tony Blair e Gerhard Schröder propuseram a síntese entre a social-democracia tradicional e o neoliberalismo. A estratégia funcionou eleitoralmente, levando partidos de centro-esquerda ao poder em boa parte da Europa Ocidental. Mas tratava-se de capitulação disfarçada de pragmatismo.

Mário Soares viu-o com clareza. No congresso do PS de 1999, alertou para os perigos desta forma envergonhada de social-liberalismo, reveladora de um complexo de inferioridade perante o neoliberalismo. Para Soares, o socialismo democrático deveria combater a hegemonia neoliberal, não administrá-la. Aceitá-la como quadro irrevogável seria deixar a esquerda mais fraca e desprovida de alternativas.

A clivagem persiste. De um lado, os que encaram as privatizações como inevitáveis, a flexibilização laboral como necessária, as parcerias público-privadas como pragmatismo sensato. Do outro, os que reconhecem em cada uma dessas medidas a desistência do projeto transformador que define a esquerda.

António José Seguro, que teria repetido o acordo com Passos Coelho se pudesse voltar atrás, e José Luís Carneiro, com a abstenção “exigente” perante o Orçamento de Montenegro, inscrevem-se nesta linhagem da capitulação. Quando o PS anuncia querer conciliar liberdade económica com igualdade social, usa uma linguagem que poderia ter sido extraída dos manifestos de Blair. É a mesma preguiça da imaginação, o mesmo abandono do horizonte transformador.

E as consequências desta rendição ideológica não são abstratas. O caso de Alcácer do Sal mostra-o de forma brutal. A ausência de controlo efetivo sobre a exploração capitalista dos recursos naturais está a produzir uma catástrofe ambiental irreversível na Bacia do Tejo/Sado.

Megaplantações de culturas intensivas substituíram pinhais e culturas de sequeiro, extraindo água do aquífero muito além da sua capacidade de recarga. O resultado é o abatimento irreversível dos terrenos e a perda da capacidade de reserva do aquífero.

Há uma discrepância alarmante entre os dados oficiais de consumo e as estimativas de especialistas, sugerindo furos ilegais e captações não autorizadas. A pressão turística agrava o problema, com dezenas de milhares de camas nos concelhos de Grândola e Alcácer do Sal a consumir milhões de metros cúbicos adicionais. E paira agora o risco crescente de contaminação salina nas áreas próximas aos estuários, ameaçando mesmo o abastecimento público.

A falta de um sistema de monitorização fiável impede uma avaliação rigorosa da situação. O Estado, capturado pelos interesses que deveria regular, assiste passivamente enquanto o capital privado suga lucros à custa do futuro de todos.

Este é o rosto concreto do neoliberalismo que a Terceira Via aceitou como horizonte inultrapassável: destruição ambiental irreversível, dados ignorados ou adulterados, ausência de controlo democrático sobre decisões que comprometem gerações futuras. A diferença entre administrar o neoliberalismo e combatê-lo não é retórica. É a diferença entre assistir à catástrofe e tentar evitá-la.

Mário Soares tinha razão. E quem hoje governa o PS em seu nome deveria ter a decência de o reconhecer.

sábado, 25 de outubro de 2025

Que triste estado de coisas!

 

A especialidade das direitas, segundo Pedro Adão e Silva, é inventar problemas onde não existem para desviar as atenções daqueles que não conseguem resolver. Daí a importância dada à proibição da burqa, quando a saúde, a habitação e o aumento do custo de vida agravam-se sem resposta efetiva.

No mesmo sentido, Susana Peralta pergunta se os legisladores que proíbem a burqa acreditam que, no dia seguinte, essas mulheres virão de cara descoberta para a rua. Pelo contrário: juntam assim a violência já contra elas cometida com a de serem remetidas ao espaço doméstico sem poderem frequentar o espaço público. O corpo da mulher serve assim, às direitas, como palco para as suas guerras culturais.

Os problemas reais permanecem, de facto, sem solução. A habitação é o problema mais urgente das sociedades modernas, impedindo estudantes, professores, médicos, polícias e outros a deslocarem as suas vidas para zonas diversas daquelas onde vivem. E está na origem do indecoroso ressurgimento dos bairros de lata, vergonha que pensávamos ter deixado para trás.

Ao mesmo tempo o Conselho de Finanças Públicas reafirma não acreditar nos números do governo para o Orçamento de 2026: as despesas estão subavaliadas, pelo que o proclamado excedente é mais uma manifestação do pensamento mágico de Montenegro e Sarmento. A realidade há-de cobrar a fatura desta ilusão contabilística.

Outros problemas anunciam-se todos os dias. Agora são as cinco centenas de crianças dos colégios privados de educação especial em vias de ficarem sem onde possam prosseguir a educação. Um estudo mostra não haver jovens que queiram ir para a polícia, preferindo ir para caixas de supermercado. E neste ano fecharam 37 salas de cinema e mais nove estão em vias de ter o mesmo destino. Colapso merecido para as distribuidoras que nelas limitam-se a ser correias de transmissão dos estúdios de Hollywood, mas sintoma de um empobrecimento cultural preocupante.

Para finalizar, a campanha de muitos socialistas a apelarem para que os candidatos à esquerda desistam em favor de António José Seguro. Homessa: não foi ele um assumido opositor da Geringonça? Não disse há dias que teria voltado a repetir o acordo com Passos Coelho se voltasse ao passado em que foi remetido ao merecido caixote do lixo de onde tenta de novo emergir? É este o candidato que a esquerda deveria apoiar em nome da unidade? Que triste estado de coisas.