Nestes dias em que as televisões acumulam comentários acintosos de gente medíocre sobre a coragem dos que navegaram até Gaza para melhor expor o genocídio ali em curso, outros exemplos de bravura merecem a minha atenção.
O filme “White Man Walking”, de Rob Bliss e Denise Alder, explicita a enorme ousadia de um homem branco capaz de caminhar milhares de quilómetros a pé pelo sul profundo dos Estados Unidos com uma t-shirt a dizer Black Lives Matter.
A sua marcha é uma experiência profundamente humana — uma forma de resistência ética e cívica num território ainda marcado pelas sombras da escravatura, dos linchamentos e da segregação. O percurso, filmado com sobriedade e sem dramatismo gratuito, expõe o nervo vivo de uma América partida, onde o simples ato de proclamar que “vidas negras importam” continua a ser, em muitos lugares, uma provocação intolerável.
Ao longo da viagem, Bliss é alvo de insultos, ameaças e olhares carregados de ódio. As câmaras registam o desconforto de quem o encara como traidor — um homem branco que ousa tomar o partido da dignidade negra. Num dos momentos mais tensos, ele é interpelado à porta de uma casa: a conversa, que começa com aparente civilidade, degenera em agressividade aberta. “Ou o senhor vai embora, ou eu trato disso”, lança o dono do alpendre. Bliss permanece imóvel, não por temeridade, mas por convicção.
Noutra cena, talvez a mais simbólica, ele senta-se ao lado de uma estátua confederada, enrolando à volta da base uma faixa com uma citação racista do vice-presidente da Confederação. A certa altura, murmura: “I could die today.” A imagem condensa o paradoxo de toda a sua jornada — a vulnerabilidade de um corpo solitário e o peso de uma causa que o transcende.
Há também momentos de encontro e de empatia: uma conversa serena com um padre em Kentucky, que lhe fala de penitência e peregrinação; breves gestos de solidariedade vindos de estranhos que lhe oferecem água ou palavras de encorajamento; o cansaço físico que vai transformando a caminhada numa metáfora de resistência moral.
O filme não é apenas um retrato do racismo americano — é um espelho cruel do nosso tempo. Porque, neste primeiro quartel do século XXI, depois do choque do covid, quando muitos acreditavam que a humanidade tinha aprendido alguma lição de interdependência e empatia, o que se revela é outra coisa: o medo do outro permanece, o preconceito resiste, e o racismo volta a envenenar corações e discursos, tanto na América como na Europa.
White Man Walking é, assim, mais do que um documentário sobre um homem e o seu cartaz. É um manifesto inquietante de que o caminho da consciência humana — o verdadeiro — ainda está por fazer, e que cada passo nesse percurso exige a coragem de enfrentar o ódio com a simples, perigosa palavra: justiça.
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