terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Será estupidez ou falta de escrúpulos?


Muitos sabem que nas primeiras duas dúzias de anos da minha vida profissional exerci funções a bordo dos mais variados tipos de navios, navegando por todos os oceanos do mundo à exceção do Antártico (embora na Terra do Fogo não o tivesse tido a distância significativa). Quer isto dizer que estarei em condições de compreender melhor do que ninguém o sobressalto por que passou o tripulante do paquete acostado num porto japonês e convertido no improvável herói dos telejornais dos últimos dias. As várias televisões deram-lhe tempo de antena e quando ele não estava ligado ao skype era a conjugue quem repetia vezes a fio as mesmas banalidades.

Tratou-se de uma situação difícil? Foi-o sobretudo empolada artificialmente, porque sem comparação com as dificuldades vividas pelas tripulações no exercício do seu mister. Só olhando para o meu passado posso considerar ter sido incomparavelmente mais difícil a experiência de passar nove meses com vencimentos em atraso em dois navios que tive  a desventura de tripular em 1991. Ou quando se acabaram os alimentos a bordo de um petroleiro ao largo da Nigéria e não se via hipótese de reabastecimento sob pena de perder o lugar na fila dos navios à espera de carregarem em Port Harcourt, mas momentaneamente impedidos de o fazerem por estar em curso um golpe de estado na capital. Ou quando quase à chegada ao canal da Mancha, vindos de Gotemburgo, outro navio teve ao mesmo tempo um assustador incêndio nos porões da proa e, ao mesmo tempo, rombos que faziam a água entrar por um lado e sair pelo outo bordo consoante a inclinação variável do navio.
Comparando com esses três exemplos o que se passa com o artífice da Nazaré equivale a mudar fraldas a bebés. Pode ser desagradável mas são quase nulas as hipóteses de morrer do vírus (a média continua a ser de uma vítima fatal em cada quarenta pessoas afetadas!). Por isso a histeria alimentada pelas televisões e imposta aos dois protagonistas, coagidos a radicalizarem os propósitos para justificarem a imerecida atenção audiovisual, leva-os aos dislates mais absurdos, como se bastasse a vontade de Marcelo ou do Governo para retirarem de bordo o potencial paciente numa altura em que muitas centenas de passageiros e tripulantes ali retidos apresentavam sintomas mais preocupantes e não fosse natural que as autoridades japonesas, o armador e o próprio comandante impusessem as estratégias mais adequadas para lidarem com a contingência.
Uma vez mais - e nos seus sucessivos artigos o Prof. J-M. Nobre-Correia vem denunciando essa absurda prática - os jornalistas dos telejornais revelam uma tal incompetência em definir as prioridades, que acabam por adotar as mais fúteis como forma de conquistarem audiências. Haja quem se possa revelar o rosto e se o faça vítima de «poderes» tortuosos contra os quais se possam exacerbar as emoções e é um fartote. Que não tarda a ser explorado pelo populistas de extrema-direita: esta noite alguns apaniguados do Chega vieram para as redes sociais emitir ruidosas proclamações contra a hipocrisia das autoridades portuguesas por não resgatarem o seu novo herói. E, uma vez mais, não sabemos o que mais nos possa impressionar: se a estupidez crassa dos seus argumentos, se a despudorada utilização de todos os pretextos para se fazerem ouvir.



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