quinta-feira, 30 de abril de 2020

Tiros nos pés


1. Marta Temido tem sido quase exemplar na gestão da crise do covid 19, mas as declarações agora produzidas num podcast a respeito da necessidade de recorrer aos hospitais privados para solucionar os atrasos nas cirurgias aprazadas para esta altura dececionam quem acredita que a resposta está no reforço do Serviço Nacional de Saúde e nunca em premiar quem pouco ou nada contribuiu para responder à emergência dos últimos meses.
Esperar-se-ia da ministra que perspetivasse a contratação de mais médicos, enfermeiros e técnicos em regime de exclusividade, melhor remunerados e com perspetivas de formação e de carreira não garantidos pelos seus atuais empregadores privados. Porque não se duvide que outras pandemias poderão seguir-se: mesmo conseguindo-se uma vacina eficaz contra este vírus muitos outros poderão assolar-nos porque mantêm-se presentes as causas por que eles se propagam entre nós: a globalização, a mobilidade das populações, a destruição de espaços selvagens colocando as suas ameaçadas espécies em contacto com a nossa «civilização». Daí que urja manter em estado de aleta todos os meios de resposta a esta e a novas crises porque, como tantos cientistas o asseveram, poderão advir.
Ao confessar a impreparação do SNS para responder à dimensão do que os portugueses necessitam atualmente para verem satisfeitos os direitos constitucionais à saúde, Marta Temido pôs-se a jeito para que as Administrações dos grupos privados estejam a salivar perante a possibilidade de, em poucos meses, verem compensados os prejuízos destes meses de assumida passividade perante uma crise para a qual nunca se mostraram dispostos a serem solução. Com tantos exemplos de práticas duvidosas denunciadas nas semanas mais recentes - tentativas de faturar com clientes que o SNS não lhes enviara, faturação aos clientes dos kits de proteção dos seus profissionais - sabemos que a prioridade dos interesses privados do setor sempre terá a ver com a maximização dos seus lucros. Dar-lhes munições para continuarem a sabotar o Serviço Nacional de Saúde, como o vêm fazendo até aqui, só nos empurra para o tipo de situações como a vivida nos Estados Unidos em que milhares de doentes morrem por falta de cuidados médicos, não tendo como os pagar.
2. Se a atual titular da Saúde andou mal neste erro de comunicação do seu pensamento, também Francisco Louçã vem produzindo reflexões, que nada ajudam à superação da presente situação. Leia-se o ensaio sobre o medo publicado na edição mais recente do «Expresso Revista» e espantemo-nos com o seu surpreendente pessimismo, que o leva a antever futuros sombrios em vez de neles identificar razões para ter esperança. Semanas atrás, em esforço semelhante Slavoj Žižek aventara a possibilidade de nos encaminharmos para uma outra forma de comunismo, diferente das que foram lamentavelmente ensaiadas em várias latitudes durante o século XX e em que se cumpram as louváveis intenções dos tios Carlos e Frederico sem as odiosas colateralidades totalitárias.
Detalhando os sintomas, Louçã mostrou-se incapaz de ir-lhes além e produzir o esforço intelectual do tio Vladimir quando, na sequência do fracasso da Revolução de 1905, se preocupou com a  questão do «Que Fazer?».
Ademais, noutros textos Louçã enfeuda-se no esforço dos que, à direita, querem à viva força provar a inevitabilidade austeritária das políticas implementadas por António Costa nos próximos meses. Ora, como escrevia Ferreira Fernandes, no «Diário de Notícias», a pesca à "austeridade" na boca de Costa é um exercício de ignorantes que não sabem que em tempo de grandes crises o dizer dos governantes pode trazer imprevisíveis desgovernos numa situação já de si caótica.

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