domingo, 12 de abril de 2020

O que poderá ser o mundo d.C.


Pandemia, uma série na Netflix, produzida antes de se conhecer o covid 19, proclamava uma evidência: não se sabia que vírus ganharia uma expansão planetária, mas era uma questão de tempo até ele surgir. A conjugação de vários fatores - a globalização, a interação entre a espécie humana e as selvagens, cujo habitat se invadia, e o crescimento demográfico - anunciavam-no aos especialistas, que confessavam-se impotentes para instarem os governos a prepararem-se para o que se seguiria.
Tal significa que, mesmo garantida a vitória sobre este vírus, mediante a vacina para cuja descoberta tantos cientistas atualmente se afadigam, nada impede que se siga um qualquer outro, porventura até mais letal, e para o qual toda esta estratégia de confinamento e distanciamento social se repita. É por isso que havendo tanta gente a conjeturar como será o mundo depois deste transe, quase ninguém se revele particularmente convincente quanto a uma resposta taxativa. Há os que olham para o ditador húngaro e apostem em distopias, feitas de imparável avanço dos populismos pós-fascistas. Há os que olham para notáveis exemplos de entreajuda, mesmo nos que mais mereceriam censura - os traficantes das favelas brasileiras ou dos bairros napolitanos - capazes de se substituírem ao Estado nas funções por ele incumpridas. Daí que os mais utópicos acreditem no que diz o Papa a propósito da necessidade de se porem de parte os egoísmos e apontem a possibilidade de saírem vencedores os valores humanistas.
Para quem toma os Estados Unidos como bitola e depara com a razia a que se sujeitam os mais pobres - sobretudo os negros e os hispânicos! - enquanto os mais abonados acedem mais facilmente à cura e ao isolamento que os acautele da ameaça, constata-se que este vírus viola as mais básicas regras democráticas: não afeta todos por igual, porque há quem não possua meios de proteção, que aos demais não faltam.
Há, ainda assim, algo que perdurará nesse d.C. : como propõe Bruno Latour (citado por Slavojo Zizek num interessantíssimo texto lido hoje no «Público») esta crise demonstrou a todos quantos vivem nas nossas sociedades desenvolvidas quão fútil era a ideia de não existirem alternativas ao tipo de organização política, social e laboral pré-crise. Os que propunham o socialismo levavam como troco, que nenhuma sociedade parecia (pelo menos aos que nela mais beneficiavam!) mais desenvolvida que as organizadas em torno da axiomática «liberdade dos mercados». Os que sugeriam uma outra forma de exploração dos recursos naturais, que obviasse aos previsíveis danos causados pelo desastre ambiental, recebiam em troca a impossibilidade da exclusiva aposta nas energias renováveis, porque os «hidrocarbonetos continuam a ser indispensáveis». 
Estes dias têm confirmado que as coisas não têm de continuar a ser como eram. Embora haja muito a corrigir - sobretudo para quem perdeu rendimentos ou os empregos -, tem sido possível constatar a significativa mudança nos paradigmas em que vivêramos até fevereiro. E que ninguém pode-nos dissuadir que as tais receitas alternativas capazes de criarem uma sociedade humana mais justa, igualitária e ambientalmente sustentável só dependem do sentido de urgência em impor aquilo que há muito deveria estar em curso. Mormente conferindo ao Estado a importância, que os defensores da sua ínfima expressão procurarão sempre obstaculizar...
 

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