sábado, 25 de abril de 2020

Porque sempre proclamarei que fascismo nunca mais!


Só muitos anos depois soube o nome a dar à sensação, que a minha curiosidade de criança muito nova atiçou, quando ouvi os adultos falarem de uns homens escondidos na quinta de Castelo Picão depois de nadarem do «Afonso Albuquerque» para a margem sul do rio e resguardarem-se dos pides, que quereriam levá-los agrilhoados. A escura adega do meu avô, onde os toneis iam do chão ao teto, terá servido de refúgio a um par deles, que ainda conheci por aparecerem anualmente para a matança do porco sempre que acabava a vindima.
Por essa altura, na casa em frente à igreja do Monte de Caparica, onde nasci e vivi os primeiros nove anos, a minha mãe alertava-me para o cuidado a ter com as conversas, porque as paredes tinham ouvidos, que relatavam ao Salazar tudo quanto captavam. Na minha inocência lembro de olhar para a sua brancura e nela identificar a localização desses ameaçadores engenhos auriculares. Até porque o meu pai, técnico de rádios e de televisões, ouvia noite adentro umas emissões em onda curta, vindas de distâncias inimagináveis, e que ninguém poderia saber ali desembocadas. Numa delas anunciava-se residir a verdade...
A proibição estendia-se, sobretudo, à casa da minha tia, que ficava na rua adjacente e cujo marido outro trabalho não tinha que não fosse polir as cadeiras da taberna do João Maria, a mais frequentada da aldeia. Em surdina cresciam suspeições sobre esse estranho labor, sobretudo quando, de madrugada, alguns homens eram levados por polícias que irrompiam pelas suas pobres casas. Tão carentes, que a filha de um deles morreria tísica enquanto ele apodrecia nas enxovias do regime.
Crescia em idade, que não em altura, mas os sonhos viravam pesadelos com militares a assombrarem-me as noites até por ouvir demasiadas vezes que nascera rapaz para ir à tropa. Que nessa altura começava a ser cumprida em África, donde chegavam imagens terríveis, liminarmente proibidas à minha estimulada curiosidade. Só mais tarde entendi serem as de colonos brancos massacrados com peculiar malvadez - sobretudo as mulheres! - que serviriam de argumento para vagas sucessivas de mancebos embarcarem para Angola e em força.
A morte de pessoas - que não a dos animais, tão frequente na quinta desse meu avô! - ainda tardaria a chegar aos meus dias, mas ela aconteceu quando o Carlitos, um dos meus mais próximos companheiros de brincadeira, ficou debaixo dos rodados de um autocarro da carreira entre Cacilhas e a Trafaria.
No «Diário de Notícias», que era lido aos domingos lá em casa, vi umas linhas sobre a morte de um tal Humberto Delgado. Perguntei de quem se tratava mas, uma vez mais, vi-me sem respostas. Que depressa chegariam, quando entrei para o liceu e tive o padre Sobral como professor de Religião e Moral. O ateu, que há muito reivindico ser, não deixa de o considerar o seu mais influente inspirador das ideias futuras. Porque, entre o primeiro e o sétimo ano, ele foi satisfazendo a curiosidade que em casa nunca se via decifrada. Sem estranheza lá íamos constatando os seus regulares desaparecimentos, que atribuíamos a chatices com a pide. A adolescência já dera o tal nome à coisa imunda, que sentíamos opressiva e nos ameaçava com a guerra.
A comedida rebeldia ia-se manifestando sempre que possível: no segundo ano vivi a angústia de chumbar por acumular três faltas de castigo nas aulas de sábado de manhã em que tinha de envergar a farda da Mocidade Portuguesa. Valeu-me andar só pelos onze anos e acharem que seria tremenda injustiça penalizarem um aluno que, no resto, até era exemplar. Para meu alívio no ano letivo seguinte essas aulas já não existiram.
A ciência do subterfúgio ia-se consolidando, tanto mais que somavam-se as histórias e elas tinham sempre um sentido inequívoco. O meu primo João Carlos voltou de África e o aviso era para dele nos mantermos distantes, porque viera meio atoleimado com a experiência de ter passado parte da comissão a enterrar os mortos em combate e os voltar a desenterrar para os mandar de volta à metrópole, quando os navios chegados à Beira tinham espaço para esses caixões.
Para evitarem esse triste desenlace alguns passavam a fronteira a salto e só paravam em distantes paragens. O Vítor, que morreu o ano passado e fora outro amigo de infância e adolescência  - conheci os Doors por seu intermédio! - só parou em Lund e de lá regressou quando a Revolução aconteceu.
Neste dia 25 de abril poderia abordar a efeméride de muitas maneiras, invocando os grandes valores, que a data pressupõe. Mas preferi olhar para trás e rever muitas das razões porque antes do movimento vitorioso dos capitães tudo parecia tão cinzento e, no dia seguinte ao da queda do regime, tão claras passaram a ser as manhãs mencionadas no poema de Sophia.
Explica-se assim o ódio por gente como o aldrabão, que se senta na extrema-direita da Assembleia da República. Porque quem viveu esse distante passado - mesmo dezassete anos, quase  dezoito, como foi o meu caso! - sempre proclamará que FASCISMO NUNCA MAIS!

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