Há quarenta anos atrás existia uma convergência de objetivos políticos entre a antiga União Soviética e os líderes das nações muçulmanas do Magreb e do Médio Oriente. Não sendo marxistas, líderes como Nasser, Bourguiba, Kadhafi, Saddam Hussein ou Assad, personificavam o espírito dos Não Alinhados, que rejeitavam com maior ênfase o imperialismo americano do que o seu rival no conflito entre as duas superpotências de então. A explicação estava no que uma e outra defendiam relativamente ao problema palestiniano, agudizado ademais pelo desenlace da guerra de 1967.
Os comunistas locais acabavam por ser um estorvo, quer para esses dirigentes, quer para os próprios senhores do Kremlin: incapazes de resolverem a contradição entre a sua lógica internacionalista e as aspirações nacionalistas dos governos saídos das recentes independências, acabaram reprimidos pelos primeiros e abandonados pelos que deveriam ser os seus maiores apoiantes. Ainda que o exemplo do Afeganistão, em que Moscovo arriscou a implantação de um regime a seu contento, tenha demonstrado a razão da estratégia anteriormente aplicada.
A viragem do egípcio Sadat, que orientou as alianças estratégicas do seu país para o campo ocidental, inaugurou o progressivo divórcio desses países com Moscovo, caracterizado hoje por um crescimento significativo do fundamentalismo islâmico e o quase desaparecimento dos intelectuais marxistas, que tinham defendido no comunismo um modelo capaz de responder ao fracasso da tradição na defesa da identidade muçulmana.
Dir-se-ia existir atualmente um antagonismo inconciliável entre o islamismo e o marxismo, apesar de um dos grandes vultos do Wahabismo - Rashid Ridâ - ter defendido em tempos (anos 30) a complementaridade entre os ideais marxistas e os princípios sociais e económicos do Estado muçulmano original.
De facto, na primeira metade do século XX o marxismo irrompera em força no mundo muçulmano, enquanto resposta ao declínio das antigas potências muçulmanas no final do século anterior. Foi em função de tais ideias, que muitas das lutas pela descolonização e consequente independência foram travadas.
Os líderes desses movimentos revolucionários estavam seduzidos pelas ideias inerentes ao progresso científico anunciado pelo materialismo histórico.
Quando se dá a vitória da Revolução Bolchevique em 1917, muitos dos muçulmanos do antigo Império Russo aderiram a ela sem reservas, cientes de conseguirem por essa via a independência das suas nações euroasiáticas. O próprio Lenine afiançara-lhes o respeito pela sua cultura e instituições!
O afastamento entre o marxismo e as nações muçulmanas surge a partir de 1923, quando Estaline opta pela criação de Repúblicas Soviéticas artificiais, que transforma a URSS numa potência imperialista. Muitos dos problemas por que passa hoje a Rússia de Putin - nomeadamente com os recentes atentados em Volgogrado - têm origem nesse ponto de viragem!
E, no entanto, o fundamentalismo islâmico até copia muitos dos aspetos estratégicos herdados do marxismo: além da retórica anti-imperialista e anti sionista, baseia muito do seu relativo sucesso no culto da personalidade e nas preocupações sociais. Diferencia-se-lhe, porém, pelo recurso a uma violência do tipo sacrificial herdado do wahabismo, que se mostrara tão eficiente na península arábica.
Pode-se, pois, considerar que, aliados circunstanciais há cerca de um século, os marxistas e os muçulmanos estão hoje em campos diametralmente opostos. Muito embora não se exclua a possibilidade de, tal como antigos trotsquistas ou comunistas ortodoxos se viraram para o radicalismo islâmico, por lhes parecer ideário mais eficaz nas suas lutas, futuras derrotas dessa estratégia não venham a suscitar inflexão de sinal oposto.
Sem comentários:
Enviar um comentário