Em 1978, quando «Guerra das Estrelas» chegou aos ecrãs nacionais, eu integrava a tripulação do «Gerês», um petroleiro da Soponata, que alternava viagens na costa portuguesa com umas quantas aos portos soviéticos do Mar Negro.
Aproveitando uma escala em Leixões, formámos um grupo relativamente grande para ir ver o filme a um dos cinemas do Porto. Entre eles havia um fogueiro chamado Gaspar, homem rústico e corpulento, que tinha a virtude de nos servir de impressionante guarda-costas se a noite viesse a revestir-se de perigos imprevisíveis.
Mas, se tinha essa qualidade, o Gaspar possuía um defeito muito particular: não conseguia ver um filme calado!
Resultado: empurrado para uma das pontas do nosso grupo, ficou ao lado de uma senhora, que viera ao cinema acompanhada do marido e de outros familiares, por azar sem alternativas para escolherem outros lugares na sala completamente cheia.
Assim, muito embora o Gilberto Jordão (outro oficial de Máquinas!) o tentasse silenciar, ali estava o Gaspar no seu fulgor a acotovelar a senhora e a explicar-lhe: “agora vai ser assim!”, “vai ver que eles vão livrar-se desta!”. Depois, mais entusiasmado gritava para o ecrã:
- Cuidado! Olha aquele que está nas tuas costas!
Provavelmente os acompanhantes da pobre senhora teriam vontade em virarem-se a ele, mas a estatura do Gaspar dissuadia-os facilmente.
Pode-se pois imaginar que esse primeiro contacto com a saga do George Lucas ficou muito mais ligada a essa truculenta experiência pessoal do que à história em si. Por muito que adorasse ficção científica tudo no ecrã parecia ter matéria para usufruir a sério mas ... noutras condições!
Infelizmente só voltei a ver essa filme no exíguo ecrã de televisão, nunca me tendo dado ao prazer de o revisitar na mais conveniente largura de uma sala de cinema. Mas saí dali convencido de se tratar de uma espécie de western, com a diferença de ter o espaço estelar como cenário em vez da vastidão das pradarias.
Desde então nunca mais voltei a dar grande relevância à saga. Quando a televisão transmitia os filmes da primeira trilogia ia-os vendo com o agrado de quem continua fã do género, mas sem ler-lhe outras vertentes, que não as da intriga em si.
Daí que confesse o meu entusiasmo por este documentário de Kevin Burns. Porque é muito persuasivo na forma como associa as diversas histórias à mitologia grega de que George Lucas se tornara um fã incondicional desde que tivera aulas com o professor Joseph Campbell.
Mas o recurso a grandes narrativas da civilização não se fica por aí: há Shakespeare ou Tolkien, sem esquecer a épica da Conquista do Oeste norte-americano.
Os seis filmes até agora rodados para ilustrarem as diversas épocas da saga constituem um «patchwork» de personagens incrustados no nosso imaginário ocidental.
É claro que, pelo meio, Burns também dá a palavra a gente pouco recomendável como Newt Gringrich - que se terá entusiasmado com a estratificação maniqueísta entre o Bem e o Mal, reportando-os à oposição entre a “boa” América e a “maléfica” União Soviética. Mas perdoam-se-lhe esses testemunhos dispensáveis, quando surge gente tão interessante e culturalmente consistente a possibilitar-nos interpretações estimulantes sobre personagens, que apenas associáramos a aventuras juvenis.
Afinal, como diria um conhecido amigo que, em tempos idos, se maravilhara com a possibilidade de todas as obras de arte poderem conter níveis diversos de leitura, «Guerra das Estrelas» merece voltar a ser apreciada com as pistas aqui avançadas...
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