E se um erudito romano da época de Nero decidisse pegar em documentos a si chegados e se pusesse a imaginar o início da civilização humana?
Foi esse o desafio a que Doris Lessing se propôs em 2007, pouco antes de se ver contemplada com o Prémio Nobel da Literatura.
Segundo contaria na altura o enredo surgira-lhe, quando lera sobre uma hipótese científica, que aventava a hipótese de a espécie humana ter sido criada a partir de uma matriz feminina só depois diferenciada para uma alternativa masculina. No fundo uma tese contrária à do texto bíblico sobre a génese da humanidade…
Temos então um amadurecido patrício que, indiferente à perturbação envolvente suscitada por um imperador psicótico e por fanáticos cristãos, se entretém a compilar e a conferir uma estrutura coerente aos testemunhos de quem terá vivido em épocas imemoriais.
Doris Lessing aproveita para abordar aqueles, que terão sido alguns dos temas mais constantes da sua obra literária: o que diferencia a mulher do homem? Em que é que tal diferença se expressa no jogo de poderes sociais?
Temos assim os primeiros “monstros” a suscitarem o espanto das “fendas”, que nunca tinham vislumbrado outro tipo de órgão genital senão o seu. Por isso entendem-no como um desvario da Natureza, que tem de ser eliminado logo à nascença.
Levará algum tempo até que os sentimentos maternos se sobreponham à lei coletiva e os rapazes escapem à sua triste sorte. Vale-lhes, então, a ajuda inestimável das águias, que os levam para a floresta adjacente para aí serem amamentados por uma corça jovem. A partir daí estão lançadas as bases para as sucessivas descobertas dessa sociedade ancestral: a luta do novo contra o velho, o desejo sexual, o prazer dos jogos lúdicos e da exploração de outros lugares associados ao masculino em contraponto à vocação de cuidadoras e do desejo de segurança do feminino.
No fundo a tese de Doris Lessing é a de existir um determinismo genético, que se antecipa à distribuição de papéis sociais através de uma educação orientada para conferir maiores privilégios aos homens do que às mulheres. O que constitui matéria polémica, longe de se esgotar nas premissas de um romance menor...
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