Não deixou de ser curiosa a emissão da «Quadratura do Círculo» desta semana com os três habituais comentadores a criticarem a relevância atribuída à morte de Eusébio e não conseguindo descolar desse acontecimento nos cinquenta minutos seguintes. Mas, de facto, a histeria coletiva, que se apossou de tanta gente, a chorar, a lamuriar e, no mínimo, a condoer-se com o sucedido, merece análise detalhada, sobretudo para ficarmos alerta dos perigos inerentes a essa reação potenciada pelo comportamento dos media.
Sem qualquer cinismo poder-se-ia dizer que talvez essa solidariedade tivesse sido de melhor valimento para o jogador nos anos em que andou a fazer pela vida arrastando-se pelos campos pelados da 2ª divisão ao serviço do União de Tomar, numa época em que as remunerações dos jogadores do seu talento não tinham ascendido aos obscenos valores atuais.
Mas, numa altura em que o congresso do cds discute uma moção a propor a redução da escolaridade obrigatória como sintoma do que pretende algum patronato nacional - trabalhadores obedientes e dispostos a trabalhar muitas horas por pouco dinheiro - a exacerbação do culto de Eusébio fez regressar os piores fantasmas do tempo do Estado Novo, quando ouvíamos repetida até à náusea o elogio da «humildade» e do «respeitinho».
Ora a humildade e o respeitinho são das piores características de quem trabalha por conta de outrem. Porque exige-se que as relações em sociedade sejam de consideração e dignidade, valores que a direita quer tornar subversivos, mas que deveremos valorizar como essenciais no mundo em que vivemos.
Como escreveu Nuno Domingos num interessante artigo sobre o tema inserido no «Público» durante o Estado Novo, estes adjetivos sempre se colaram a uma idealização do africano assimilado, simples, humilde, mas também conformado e passivo. A passividade e o conformismo, eufemisticamente travestidos de “humildade” e “simplicidade”, eram a moeda de troca pelo acesso à “civilização”. A mesma ideia aplicava-se, aliás, no mesmo período, aos desejos de formação de uma classe trabalhadora respeitável, humilde, simples e resignada com o seu lugar.
Hoje exige-se que os 99% de cidadãos submetidos à força bruta das políticas troikeiras de passos coelho e paulo portas sejam a antítese dos que se humilham e resignam à injustiça a que os pretendem submeter. E recuperem os direitos, que esta momentânea conjuntura fez regredir a passados a rejeitar...
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