Que um mesmo acontecimento pode ter duas leituras diametralmente opostas demonstra-o este documentário sobre a colorida vida de Bettie Page.
Quem olha para as pin ups facilmente as associa às mulheres objeto tão verberadas pelas feministas. As fotografias nas paredes das camaratas militares ou das oficinas de reparação de automóveis são o paradigma dessa visão da Mulher reduzida à condição de estímulo sexual. Tanto mais que muitas dessas pin ups ostentam formas exuberantes dificilmente ajustáveis à maioria das mulheres.
Ademais, Bettie aceitou posar para fotografias e filmes onde práticas sadomasoquistas ainda mais poria os cabelos em pé às aguerridas militantes da igualdade entre géneros, que reagiriam com indignação a cenas em que mulheres amarradas eram sujeitas a palmadas nas nádegas ou chegavam a ser fustigadas com um chicote.
E, no entanto… mais ou menos na mesma época em que Joseph McCarthy caía em desgraça e morria como um pária depois da sua campanha contra os comunistas, o democrata Estes Kefauver mostrava não ter aprendido a lição e encetava uma vindicta contra a pornografia, pela qual julgava possível promover-se politicamente à custa das mentalidades mais vitorianas. E Bettie Page é então uma das suspeitas convocadas para ser ouvida (e eventualmente sancionada) na Comissão senatorial.
Se o mccarthismo significava uma violação grotesca à liberdade de pensamento, a comissão de Kefauver pretendia explorar o puritanismo mais serôdio e punir quem quisesse viver uma sexualidade exuberante e sem complexos, como a que a modelo expressava. Porque todos quantos a conheceram são unanimes em recordar a forma desempoeirada como ela ostentava o seu direito ao prazer.
Assim, a seu modo, Bettie Page contribuía seriamente para a revolução de costumes, que ocorreria nos anos 60 e deveria tornar obsoleta a conceção de uma sexualidade orientada exclusivamente para a procriação. (É claro que não se imaginaria que os jovens do cds ainda hoje demonstrassem perfilhar essa tese como se demonstrou na sua ridícula moção para o Congresso do seu partido!).
Mas a irreverência de Bettie Page não se ficaria apenas pela sacudidela na moral embotada dos puritanos do seu tempo: criadora dos seus próprios bikinis, ela influenciaria ativamente a moda das décadas seguintes, nomeadamente em Jean Paul Gautier e Madonna, que viriam a assumir explicitamente essa inspiração.
Ademais, o documentário de Mark Mori é interessante a outros níveis, sobretudo quando se debruça sobre a própria biografia da homenageada, que conhecera a miséria mais extrema no seu Tennesse natal e o desequilíbrio mental dos anos subsequentes ao abandono da sua atividade pública.
Felizmente que graças a alguns admiradores - entre os quais Hugh Heffner - ela morreu no conforto de se saber redescoberta e valorizada. A sessenta anos de distância, Bettie Page é um dos rostos (e corpos) iconográficos da contraditória década de 50, quando os reflexos da velha sociedade de antes da Segunda Guerra se digladiaram ingloriamente com os sinais de uma modernidade anunciada já na música rock, nos filmes de Nicholas Ray ou nos livros da beat generation.
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