À medida que avanço na leitura da «Trilogia Suja de Havana» há um paradoxo, que vai tomando forma: o protagonista, que se autobiografa, vai caindo na miséria e na devassidão mais lastimosas como comprovação do agravamento da crise económica e social subsequente à destruição da União Soviética e do corte dos apoios daí chegados à pequena ilha do Caribe. Mas é precisamente essa queda no abismo, que o tornará num escritor de sucesso. Assim, enquanto sobram muitos cubanos a, por essa segunda metade dos anos 90, arriscarem a travessia do braço de mar até Miami em barcaças improvisadas, Pedro Juan só tem que acrescentar um ponto ao conto para se transformar num escritor de sucesso.
O sucesso literário do escritor provém exclusivamente dessa imagem corrompida de Cuba, que constitui o ajuste de contas com um regime de que se viu excluído: Não gosto de falar das etapas da minha vida porque é remexer na dor. Mas é assim. Vive-se por capítulos. E é preciso aceitar. Muita gente à minha volta injetou rancor e ódio no meu coração. O final era previsível: mergulhar no caos, seguir para baixo e não parar senão no inferno. (pág. 204)
A miséria de então fazia estragos. E o principal passara a ser a torpeza que se apossara de toda a gente, não se vislumbrando sinais da generosidade e solidariedade coletiva, que deveria caracterizar a sociedade construída a partir do ataque à Sierra Maestra: A pobreza tem muitas caras. A sua cara mais visível é talvez a capacidade que tem de nos despojar da grandeza de espírito. Ou, pelo menos da largueza de espírito. Converte-nos em tipos ruins, miseráveis, calculistas. A única necessidade é sobreviver.(pág. 153)
Pedro Juan não se poupa a cair no nível mais rasteiro do que possa significar a perda de dignidade, Assim, num dia de bebedeira com uma mistela adulterada em que acorda sem sapatos e sem camisa no Malecón, a esmola é alternativa que lhe resta: Estendi a mão e comecei a pedir esmola a quem passava. Balbuciava apenas algumas palavras. Quando se pede esmola não se pode falar claro, nem raciocinar, nem nada. É-se um mísero animal, um micróbio que pede umas moedas por amor de Deus. Um pestífero. Sempre assim foi desde que o mundo é mundo. É uma arte pedir esmola e fingir que se é idiota, cretino, Bêbedo crónico, estúpido. Só um idiota pede esmola. (pág.194)
Terá sido por pouco que esse episódio não lhe custou a vida. Uma estadia longa no hospital ninguém lha tira, mas nem por isso se deteta nele um reconhecimento merecido pelos cuidados de saúde instituídos pelo regime castrista.
Mas, quando não alimenta rancores contra o poder político, Pedro Juan conforta-se com a abulia: Hoje não estou muito organizado por dentro. Não consigo escrever. Não páro de repetir a mesma frase: amo as cicatrizes, não as feridas. Por que será que repito isto que nem um paranoico? Amo as cicatrizes, não as feridas. (Pág. 160)
O livro vai-se aproximando do final, quando ele revela a inquietação suscitada pelo envelhecimento. Pressentindo a perda de muitas das suas características: E cá vou envelhecendo. E descobrindo que perco a capacidade de cinismo. Perco energia e alegria e poder de multiplicação. Já não consigo raciocinar com o mesmo cinismo como quando era novo e queria sempre ficar na minha e ter a última palavra. (pág. 179)
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