segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Filme: «QUEM TEM MEDO DE KATHY ACKER?» de Barbara Caspar (2007)



Às vezes somos forçados a constatar que fenómenos contemporâneos nos passam ao lado apesar de assumirem alguma importância e merecerem a nossa atenção.
Confesso a total ignorância sobre Kathy Acker até ver este documentário de 70 minutos sobre o seu percurso biográfico. Que elucidou sobre uma escritora e cineasta irreverente, que esteve na dianteira da revolução punk nova-iorquina do final dos anos 70 e, qual cometa errante, surgiu com enorme fulgor, depressa se apagando de seguida.
A exemplo dos seus colegas de movimento exigia fazer tudo á sua maneira, independentemente das reações que suscitasse. E, ademais, enquanto mulher pretendia aceder a tudo! E este tudo tinha muito a ver com a sexualidade, que abordava de forma chocante, direta, de uma forma como só os homens (tipo Henry Miller) costumavam utilizar.
Um bom exemplo é um dos seus filmes underground, «The Blue Tape», de 1974, co-assinado com Alan Sondheim, em que defende a primazia do desejo sexual sobre qualquer outro assunto.
A personagem de Janey, seu alter ego a que constantemente recorre, personifica todas as suas experiências.
Já então existe uma total recusa dos estereótipos femininos em que a pretendiam formatar desde criança. Em que via as mulheres, a exemplo da sua própria mãe, a serem abandonadas, quando engravidavam, numa clara constatação de se viver num mundo deveras perigoso…
Kathy nunca chegou a conhecer o pai e sempre odiou a mãe. Com tal contexto familiar não se surpreenderá um início bastante precoce na sexualidade, quando só conta 13 anos e já é vista na escola como uma rapariga peculiar no seu interesse pelos poetas malditos.
Escreve num dos seus textos que o casamento destrói todos, tornando os homens ainda mais narcísicos e as mulheres mentirosas. Para ela é inevitável que, num casal, um ame e o outro se deixe amar. Mas todos se ajustam a essa forma de relação familiar porque vivemos numa sociedade em que ninguém liga a quem não se lhe ajusta.
Radicada em Nova Iorque vive sempre no limiar da miséria mais absoluta, convivendo com prostitutas, com vagabundos e outros excluídos do sonho americano, que vai retratando em textos e filmes. Quando se arrisca a pedir dinheiro à mãe esta manda-a bugiar, convidando-a a deixar-se enterrar pelo lixo e devassidão da cidade. Mas essa mesma mãe impressioná-la-á na condição do primeiro cadáver que se lhe depara, quando a identifica na morgue.
No já referido filme de 1974 ela filma-se a ter relações sexuais com o namorado, mas em vez de pornografia, o que se revela são as relações de poder entre os dois amantes. Escreve então que o escravo é sempre mais esclarecido do que o seu mestre e o quanto o seu interesse pela pornografia tem muito a ver com o facto de constituir o ponto de observação ideal para observar o mundo real.
É então Kathy, a selvagem, a drogada, que passa o tempo a escrever sobre os seus temas de eleição: sexo, violência e política.
William Burroughs, que a lê atentamente, considera-a genial e a mais aproximada reencarnação do espírito de Rimbaud.
Opta então por pegar em textos alheios, muitos deles clássicos (Shakespeare, por exemplo) e desconstrói-os com a sua linguagem desbragada. Retoma assim a lógica dos seus admirados piratas, que vogavam pelos oceanos e saqueavam as riquezas alheias em seu proveito.
Nessa altura ainda publica em edições de autor, que se encarrega de distribuir pelas livrarias mais arrojadas de Greenwich Village.
«Sangue e Estupro no Liceu» contribuirá para o seu sucesso mediático. Igualmente publicada na Inglaterra constitui um tal sucesso, que as entrevistas sucedem-se nos mais prestigiados programas da BBC e lidera os rankings dos best-sellers. De repente transforma-se num ícone da nova literatura nova-iorquina, muito embora as feministas condenem a perspetiva da sexualidade a partir da lógica da perversão: os seus textos vão refletindo uma cada vez maior atração pela dor, que testemunha o seu masoquismo excessivo.
Na década de 80 o governo alemão condena os seus textos como nocivos para a juventude e um escrevinhador menor, Harold Robbins, irá processá-la por plágio. Muda-se então para San Francisco aonde a sua irreverência poderá encontrar um palco mais complacente. Num dos seus pubs mais conhecidos dá aulas sobre Bataille, Sade e Genet. Ou dá conferências sobre as suas experiências literárias, que incluem descrever as sensações enquanto tem um orgasmo graças à manipulação de um vibro-massajador.
Cada vez mais a fascina a dor propiciada pelas suas relações masoquistas com todo o tipo de homens, que seduzia essencialmente para melhor os conhecer na sua infindável diversidade.
Quando o cancro lhe é detetado irá aproveitar para dele dar conta de todos os efeitos em si mesma. Incluindo a decisão, concluir-se-á que errada, de abandonar as terapias médicas reconhecidas em proveito da decisão radical de fazer duas mastectomias.
A lenta degenerescência acompanhá-la-á até à morte em Novembro de 1997, quando escolhera o México para a despedida da vida.
Quinze anos depois poder-se-á considerar que muito mudou na relação da sociedade com a sexualidade, ao reprimirem-se as suas mais anódinas manifestações em proveito de um conservadorismo moral, que acompanha o da economia e o da política nos nossos dias.
Mas, na libertação da rolha, que vai contrariando as pulsões libertárias de quem vive frustrado nesta sociedade de números e não de pessoas, as propostas de Kathy poderão vir a ser retomadas. E não nos admiremos que apareçam muitos a terem medo de tais ideias...

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