Para que serve um filme? À partida podemos encontrar duas razões para que ele exista: divertir (tese defendida pela maioria dos espectadores aficionados de pipocas) ou serem úteis na consciencialização de algo.
Com Joachim Lafosse, realizador belga que apresentou «À Perdre la Raison» na seção «A Certain Regard» na mais recente edição do festival de Cannes, não se pode atribuir-lhe a primeira daquelas intenções: o filme é incómodo para quem o vê ao traçar a lenta queda no abismo de uma jovem mulher apostada em construir uma relação de amor e a encontrar nele um insuportável desiderato.
Mas se está em causa a condição feminina e a sua subjugação à força bruta ou à fraqueza dos homens com quem vive, Lafosse exclui quaisquer propósitos sociais nos seus filmes. Pelo contrário até os execra como se a demonstração de um mal estar social e a sugestão de alternativas fosse algo de condenável num criador artístico.
A história conta-se em poucas palavras: Murielle apaixona-se por Mounir e aceita-lhe o pedido de casamento sem compreender o que significa ficarem a residir com o dr. Pinget, uma espécie de pai adotivo com quem ele vive desde criança.
Nos primeiros tempos os filhos vão nascendo e os bens materiais não faltam. Mas a dependência do casal para com o médico é excessiva e ela vê-se cada vez mais deprimida num círculo afetivo irrespirável.
Numa altura em que a crise económica, financeira e social tanto contribui para a destruição da célula familiar, Lafosse alheia-se dessa conjuntura e trata a história como produto de uma relação malsã entre as personagens.
Murielle vai sentir-se progressivamente isolada no interior de si mesma, fatigada, o olhar vagamente perdido em nenhures.
O doutor Pinget, que começa por parecer cheio de boas qualidades humanas no seu ofício de médico de família acaba por se revelar tóxico, utilizando a riqueza para comprar os que são obrigados a rodeá-lo, a dar-lhe a devida atenção.
Em vez de um bom samaritano ele encarna o mal absoluto, logo anunciado ao primeiro encontro, quando anuncia à rapariga o quanto a não gosta dela.
Vive-se assim na promiscuidade da intrusão permanente sem espaço para o casal alimentar a sua relação, nem sequer para cada um poder-se afirmar por si mesmo.
Murielle vai encaixar todas as ignomínias, insidiosas ou explicitas, dos dois homens com quem vive. Até perder a razão e cometer o irreparável…
Há quem lamente que tal assunto não tivesse tido Chabrol a tratá-lo, porque decerto cuidaria da sua necessária ambivalência. Assim, pelo contrário, resume-se a uma lenta, insuportável e anunciada descida aos infernos...
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