segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Os Malagridas do nosso tempo

 


Aprender com a História para evitar a repetição dos erros. Este é um dos conselhos avisados, que é rejeitado por quem vê nas circunstâncias a oportunidade de realizar inconfessáveis objetivos. Por isso olha-se para os tempos atuais e veem-se tantos Malagridas a vociferarem contra o SNS e o governo.

Na nossa História temos o exemplo do Terramoto de 1755: perante a devastação por ele causada o Marquês do Pombal estipulou que se enterrassem os mortos e se cuidassem dos vivos. A reconstrução viria depois.  Não faltaram, porém, as vozes dos que aproveitaram as circunstâncias para satisfazerem as suas agendas ideológicas. O caso mais conhecido foi o do jesuíta Gabriel Malagrida, que tudo quis explicar como fundamentada na conduto pecaminosa dos contemporâneos e, sobretudo, de quem lhes regia os destinos. Nas suas fanáticas preleções pretendia pôr em causa o poder do primeiro-ministro que, influenciado pelo iluminismo, estava a conter o exagerado poder da alta aristocracia e do clero.

Se supuséssemos uma transmissão genética desse oportunismo político, não seria difícil encontrá-la repercutido no comportamento quotidiano dos bastonários dos médicos e dos enfermeiros, que apontam as dificuldades de gestão da crise sanitária às falhas do Serviço Nacional de Saúde. Como se um e outro não fossem denodados provedores dos interesses da medicina privada, que só ganha com a decapitação do serviço público para a potenciação indecorosa das mais-valias dos grupos, que fazem da saúde um negócio.

Algo de Malagridas, igualmente, nos apocalípticos pareceres dos muitos especialistas, que se sucedem nos telejornais a incendiarem o imaginário coletivo com conjeturas de indemonstrado fundamento. Apresentando-se muitos deles como médicos, não deveriam estar focalizados tão-só nesta fase de cuidar dos vivos, escusando-se a fazerem o papel dos que nos dias subsequentes ao 1º de novembro de 1755 poderão ter andado por entre os escombros da cidade a bitaitarem sobre o devia ter-se-feito assim ou assado?

Malagrida teve triste fim, porque, acusado de heresia, acabou nas chamas da Inquisição em 1761. Os malagridas atuais livrar-se-ão de desiderato tão definitivo, mas daqui a uns meses, quando a situação tiver sido superada e António Costa mantiver a conhecida aptidão para reconstruir a economia, quem se lembrará dessa gente que, muito apropriadamente, a Drª Graça Freitas compara aos que, nada percebendo de dirigir o voo de um avião se aventuram a opinar sobre como ele deverá ser concretizado. A fogueira oitocentista equivalerá ao anonimato a que tal gente se verá acondicionada.

Sobre tudo isto Constantino Sakellarides assina um texto de opinião no «Público» de hoje. Com a sua admirável elegância lembra que “a pandemia tem os seus tempos”, sendo este o de  “nos defender, e proteger os outros, do vírus agressor. E, ao mesmo tempo, viver, resistir, sentir, agir e imaginar dias melhores que estão para vir.” Sem avaliações ou juízos apressados.

Porque (...) “o tempo agora é de juntar forças e resistir, ganhar tempo e esperança, até uma vacina eficaz, medicamentos de ação mais precoce e testes “que se possam fazer em casa”.”

(...) É o tempo, também, para a comunicação social ajustar-se a este tempo, minimizando aqueles espaços sem contraditório, onde, com demasiada frequência, à ignorância sobre os temas pandémicos, se juntam juízos precipitados e infundados, que alimentam formas de polarização social que o país dispensa.

(...)  Este é também o tempo de, independentemente dos nossos posicionamentos políticos e de juízos mais ou menos informados sobre o que correu melhor ou pior no passado, dar força e alento aos que nos governam, valorizando com apreço o seu enorme esforço e determinação em servir o país em condições de dificuldade extrema.

Continuaremos todos a trabalhar para encontrar a forma justa de aprendermos o necessário com o que experimentámos. E não perderemos mais esta oportunidade para fazer melhor no futuro.”

O que de melhor poderia acontecer-nos nesta altura era ver tanta gente insensata tomar por exemplo as palavras sábias do insigne Professor. Infelizmente há poucas esperanças em ver esse desejo cumprido.

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