terça-feira, 10 de março de 2020

A urgência de uma nova narrativa para o futuro


A história é contada por Hubert Reeves num dos seus mais recentes livros: dois planetas encontram-se algures no espaço e um constata que o outro está com um aspeto sujo e malcheiroso. O que te aconteceu?, pergunta-lhe. E o outro responde ter apanhado Humanidade, como se ela constituísse doença tipo gripe ou coisa pior.
Cresce a consciência coletiva de nos aproximarmos de um possível apocalipse feito de uma mistura explosiva de emissões de carbono, sobrepovoamento e uso intensivo de pesticidas pela indústria agroalimentar. E alguns estudos apontam para chegarmos proximamente a temperaturas 7ºC mais elevadas do que as atuais, que tornarão inabitáveis as zonas equatoriais, o Médio Oriente, grandes extensões asiáticas e da América Latina. Milhões de pessoas terão uma de duas alternativas: deixarem-se morrer sem reagir ou encaminharem-se para o norte onde os governos e as populações tenderão a rechaça-las em nome dos preconceitos xenófobos mais ignóbeis.
Nos anos 70 do século passado emergiu um movimento de contestação deste rumo das coisas, que chegou a reunir mais de vinte milhões de manifestantes nos Estados Unidos. Hoje, nem nos sonhos dos ambientalistas mais otimistas uma contestação social dessa grandeza se afigura possível. De facto, com Reagan e Thatcher, ganhou asas um neoliberalismo predador, que desregulamentou todos os obstáculos ao sucesso dos negócios, e iludiu as emergentes classes médias com o acesso a um consumismo desenfreado.
Paradoxalmente essa afirmação do capitalismo na sua versão mais selvagem coincidiu com o fim dos Trinta Gloriosos Anos, que dera crédito a essa ideia de um crescimento imparável, quer na utilização de todos os recursos naturais, quer no aumento do PIB/habitante.
Os anos mais recentes desmascararam a mentira subjacente às políticas dos governos impulsionadores dessa insensatez. Os rendimentos estagnaram e até mesmo decaíram para grande parte da população, que viu as desigualdades crescerem abissalmente em relação aos que tudo têm e ambicionam acumular ainda mais capital. E chegamos a este momento histórico em que até os banqueiros e investidores reconhecem a necessidade de arrepiar caminho noutra direção ... conquanto se respeitem os seus interesses instalados.
Alguns ingénuos avançam com propostas quixotescas, que lembram a história do colibri: no meio de um incêndio descontrolado, os outros animais viram-no a procurar água e a despeja-la, gota a gota sobre o incêndio. Surpreendido o tatu ter-lhe-á perguntado: “julgas conseguir vencer o fogo com essas gotas, que contra ele derramas?”. Ao que ele respondeu: “sei que não mas, pelo menos faço a minha parte”.
É essa a proposta de alguns ambientalistas: se cada um fizer um pequeno esforço algo de substantivo mudará. Só que a situação de emergência atual já não se coaduna com a decisão de, por exemplo, tomar um duche diário em vez de dois. Diariamente a água afetada mundialmente ao consumo doméstico representa 9% do total, sendo os 91% restantes consumidos pelas indústrias, nomeadamente a agroalimentar, aquela que tanto busca o lucro mediante o recurso aos pesticidas e à desflorestação das regiões tropicais.
Cyril Dion, que publicou recentemente um autêntico manifesto—Petit Manuel de Résistance Contemporaine - defende que a situação já não chegará a um bom porto à conta desses esforços voluntariosos dos mais conscientes. Importa mudar a narrativa sobre o estado em que hoje estamos, apontando o dedo a quem aceleradamente o causou, e tomando como nova interpretação da realidade a que já não se coaduna com os discursos dos políticos sobre os crescimentos ou sobre  paliativos incapazes de obstarem a uma deriva para a tragédia coletiva.

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