segunda-feira, 23 de março de 2020

Milagres à vista nalguns mediáticos arrependidos


Passámos o primeiro domingo em estado de emergência e as inquietações podem moderar-se com a constatação de só termos a epidemia a crescer em progressão aritmética, e não exponencial, o que prefigura a possibilidade de o nosso saldo final de infetados e vítimas mortais não equiparar-se ao verificado por quase toda a Europa. Tanto mais que, quer em Espanha, quer em Itália - mesmo ainda correspondendo a números assustadores -, a curva parece finalmente achatar-se, tendendo para a almejada inflexão. Mas, a serem verdadeiras as imagens de gente a passear-se por marginais de algumas cidades, ostensivamente a desrespeitarem as regras impostas pelas circunstâncias, temos de reconhecer que a inépcia mental ganha em algumas cabeças uma perigosidade acima da do próprio vírus.
Nas redes sociais há quem levante uma questão pertinente: podemos imaginar o molho de brócolos em que nos veríamos se não tivéssemos António Costa como primeiro-ministro? Se fosse Passos Coelho a liderar o combate à ameaça com o velho preconceito neoliberal de ser judiciosa a ideia de «menos Estado, melhor Estado»? Ou mesmo Rui Rio, que nos tem brindado nos meses anteriores e subsequentes á da sua confirmação como presidente do PSD, com inauditas contradições com o que aparentemente algum dia terá defendido, apenas movido pela lógica do bota-abaixo? Se com um governo a tática pode colher sucesso, ainda que reduzido, junto dos cristalizados antissocialistas, ela de nada serviria com um vírus contra o qual pagaríamos avultados custos com tais ambiguidades.
Há, porém, algo que, de além-Pirenéus, está a sobrar como inesperada consequência desta crise: o de figurões em tempos aparentados aos socialistas andarem agora a descobrir as virtudes do Estado e os malefícios dos mercados. Emmanuel Macron, que tanto ajudou François Hollande a quase destruir o PS francês, veio agora dizer com falsa candura que “será preciso amanhã tirar lições do momento que atravessamos, interrogar o modelo de desenvolvimento em que há décadas o nosso mundo se envolveu e que agora mostra as suas falhas à luz do dia, questionando também as fraquezas das nossas democracias.”
O espanto não fica por aqui: o antigo quadro do Banco Rothschild não se limita a criticar o capitalismo selvagem também reconhecendo que “há bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado”.  Jesus, que sabemos ter dado a visão a cegos e curado leprosos, dificilmente conseguiria tal milagre: a conversão de um tão dedicado paladino da financeirização das economias à bondade das receitas socialistas.
No mesmo sentido pronunciou-se Jacques Attali, que foi conselheiro de Mitterrand e depois flirtou com a presidência de Sarkozy. Numa entrevista afirma ter colhido da História a lição de só evoluirmos decisivamente, enquanto Humanidade, quando vivemos a experiência do medo. Por isso pressupõe virem aí tempos de virar costas a uma sociedade baseada no egoísmo e no lucro, privilegiando a empatia e o altruísmo.
Não é que estas confissões de fé dos arrependidos da decadente social-democracia nos devam comover. Pelo contrário até podem significar que, perante a perspetiva de se tornarem imperiosos os valores do socialismo democrático, os paladinos da sua contenção em proveito dos que defendem os interesses dos mercados, venham propor novas versões recauchutadas da falaciosa Terceira Via. Na tal lógica de parecendo mudar alguma coisa, deixarem tudo na mesma...

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