segunda-feira, 2 de março de 2020

Quem os inimigos poupa...


Não é difícil fazer com que uma Democracia moderna tenda a orientar-se para características ditatoriais através do voto dos eleitores. Hitler já o demonstrara possível em 1933 e, nos últimos anos, diversos candidatos a novos Führers seguiram-lhe as pisadas, não só os mais mediáticos Trump ou Bolsonaro, mas também os Orbans, Erdogans ou Dutertes, que foram ganhando escrutínios nacionais nas mais diversas geografias.

Haverá quem alegue ainda cumprirem-se os requisitos formais dessa mesma Democracia nalguns desses países mas, no caso dos Estados Unidos, o que significará um segundo mandato de Trump na Casa Branca quanto à redução até ao quase nada dos chamados contrapoderes de contenção das suas pulsões autoritárias?
Uma série gravada meses atrás e só agora descoberta a partir da powerbox - «MotherFatherSon» - mostra como se criam as condições para que um qualquer tirano se faça eleger para o cargo donde quase tudo pode decidir em prol ou em desfavor de quem o elegeu.
Há, em primeiro lugar, uma imprensa necrófaga pronta a utilizar tudo quanto possa servir os seus interesses, mesmo que distorça a realidade à medida desses objetivos. Na série temos Richard Gere como paradigma do empresário sem escrúpulos, que não hesita em atear incêndios onde eles mais facilmente despontem se lhe permitirem aumentar as audiências das suas televisões ou as tiragens dos seus jornais. É o que o grupo Cofina vai almejando fazer por muito que o seu dono não tenha a inteligência, e muito menos a sofisticação, do conhecido ator norte-americano. Mas a óbvia intenção de promover a agenda da extrema-direita tem sido evidente de há muito tempo a esta parte.
Há também o candidato a ditador. Na série inglesa a sinistra Angela Howard não hesita em dizer-se avessa à política, porque não é mais do que uma empresária disposta a pôr o país a funcionar como se fosse uma das suas empresas. E, por isso, não hesita em manipular os mais pobres, os menos alfabetizados, fazendo-lhes crer que lhes arranjará casas e empregos, passando a ouvi-los ao contrário dos que deles não tinham querido saber.
Esta ascensão de políticos oportunistas, capazes de dizerem aos mais desfavorecidos aquilo que mais querem ouvir, é uma estratégia que rende votos, mesmo que depois nenhuma das promessas venham a ser satisfeitas. Mas, nessa altura, já uma qualquer ordem a declarar o «estado de emergência» permitirá todos os atropelos às liberdades fundamentais, como já hoje se constata na Hungria, na Polónia e pouco faltará para que se verifiquem nos EUA ou no Brasil.
Daí que importe cortar a cabeça à serpente antes dela ter tempo de causar grandes danos. Por isso mesmo, quando há quem proclame desprezo pela Constituição na própria casa onde só pode ter assento quem se comprometa com tudo quanto nela se definiu, não se compreende a fraqueza dos que deveriam estar nesta altura a fazê-la cumprir e levar à justiça quem tão grosseiramente a transgrediu. Mormente retirando o mandato a quem tratou de se deslegitimar. Nesse sentido Valter Hugo Mãe tem total razão, quando escreve sobre esta matéria: “Que exista um político eleito que possa sequer ironizar o império da Constituição é aberrante, e que o sistema não se imponha penalizando-o imediatamente e de modo veemente é mais aberrante ainda. É uma falha ingénua da democracia, que se vê posta em causa no que tem de mais sagrado. “
Como diz um velho ditado quem os inimigos poupa, às suas mãos se arrisca a morrer.

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