Não deixa de ser curiosa a coincidência de se estar a publicar em França um volume inédito de Louis Ferdinand Céline («Guerre») quando a questão nazi é uma das mais pertinentes na guerra ucraniana.
Em França reabilita-se um escritor assumidamente antissemita, que colaborou com os nazis durante a Ocupação, louvando-se-lhe a escrita singular, apreciada em função do seu estrito “valor literário”. Como se os conteúdos pouco importassem ou até merecessem elogio, porque o protagonista, jovem soldado hospitalizado, compraz-se com uma sucessão de fornicações bissexuais e maldiz os pais, que o visitam e de quem diz pior que Maomé do toucinho.
A leste é o que se sabe: Putin e Zelenskii acusam-se mutuamente de nazis com a imprensa ocidental a pôr-se do lado deste último, mesmo reconhecendo a ideologia neonazi da Brigada Azov ou a veracidade dos 42 assassinados em maio de 2014 na Casa dos Sindicatos em Odessa às mãos dos incendiários, que surgem agora como heróis patriotas de um país ocupado.
Por ora, e à exceção do comunicador-mor de Kiev e seus mais entusiastas apoiantes, ninguém consegue encontrar justificação para legitimar o conceito de genocídio, muito embora os invasores repitam os crimes conhecidos do Exército Vermelho em 1945, quando perpetraram fuzilamentos sumários e violações em massa contra os sobreviventes alemães. Mas como a História foi então reescrita pelos vencedores, poucos se importaram com esse ignóbil comportamento. Até se arranjou o pífio argumento dos soldados soviéticos expressarem nessas crueldades a raiva pelos vinte milhões de mortos, contados entre os seus familiares e amigos.
Agora, porque ainda ponderam na possibilidade de verem os russos vencidos, os mesmos atos de há quase oitenta anos merecem leitura diferente por aqueles, que se arriscam a ter de moderá-la, acaso o resultado final saia diferente daquele que anseiam. Para já vão-se enganando em todas as conjeturas sobre o comportamento de Putin: ontem, no discurso do 9 de maio, ele não contemplou nenhuma das hipóteses dos que se tinham arriscado a prever-lhe o conteúdo. Daí que a imprevisibilidade se mantenha como hipótese no futuro próximo, quer quanto ao recurso global a armas nucleares, quer quanto ao risco de a União Europeia imitar a Rússia numa crise económica suscitada pelas sanções, que lhe impôs e a embate em certo ricochete. Com os norte-americanos e os chineses a, de fora, contarem os lucros de um conflito, que só a eles beneficia...
Sem comentários:
Enviar um comentário