Uma das fraudes ideológicas mais em voga é a de caracterizar o nosso tempo como o do confronto entre as «democracias liberais» e os totalitarismos, muito embora nestes últimos os que falsamente aparentam ter algo de esquerda (Rússia, China), sejam vistos como inimigos mais odiosos do que são os claramente fascistas (Hungria, Polónia, Arábia Saudita) ou colonialistas (Israel).
No caldeirão liberal cabem os governos mais próximos da social-democracia (Portugal, Espanha), mas são claramente incensados os que não enganam pela ideologia assumidamente de direita (EUA, Inglaterra, França). No fundo procura-se escamotear o essencial: nesta fase crepuscular do capitalismo em que o abismo entre os muito ricos e todos os demais se vai alargando, a imprensa, a mando dos primeiros, vai fazendo os possíveis por evitar aquilo que a História demonstra inevitável: um confronto de classes, que derrube quem vive da especulação bolsista e imobiliária, dos monopólios da informação digital e da exploração das fontes poluentes de energia, e devolva à sociedade os valores da distribuição mais justa das riquezas sustentavelmente produzidas.
Quem procura eternizar um sistema económico, que há muito pressente o seu fim na História, precisa de arranjar inimigos mediáticos como Putin e criar falsos heróis como Zelanskii para que não os olhemos como aquilo que são: duas faces da mesma moeda em que ambos representam o conúbio com oligarcas e militantes neonazis e coincidem nas tentações de privação das liberdades fundamentais dos seus adversários políticos. Por isso primam pela proibição ou cerceamento dos partidos e movimentos políticos oposicionistas (45% dos deputados ucranianos viram os seus partidos ilegalizados) e das liberdades de expressão de pensamento ou de imprensa (e se Putin os silencia sem escrúpulo, Zelenskii demonstra bem a índole quando, anteontem, verberou os canais franceses, que decidiram também cobrir a guerra do lado russo). Para não falar da inaceitável proibição de canais russos pela União Europeia numa decisão absolutamente contrária aos princípios, que a dizem nortear.
Na propagandeada luta entre «democracias liberais» e totalitarismos vamos sendo iludidos quanto ao essencial e é aquilo que continua a fazer todo o sentido: existe globalmente uma guerra ideológica entre as esquerdas e as direitas, as primeiras procurando aproximar as sociedades humanas dos valores da liberdade, da fraternidade e da igualdade, defendidos pela Revolução Francesa e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, as segundas tudo fazendo para que as coisas continuem a ser como são, ou seja uns mandando e abocanhando a maior parcela das riquezas e os outros indignando-se, conformando-se ou servindo de idiotas úteis ao serviço daqueles que deveriam enfrentar como seus inimigos de classe.
E esse é o verdadeiro drama que hoje se vive na Ucrânia com tão graves consequências para quem nela morre, é ferido ou empobrece: dois regimes de direita fazem o que a História demonstrou residir na sua natureza belicosa, o mais forte invadindo o que se adivinha mais frágil, mas ao lado do qual se perfilam interesses a ele associados, enquanto as injustiças se agudizam (vide o Relatório da Oxfam sobre como os ricos se têm tornado ainda obscenamente mais ricos nestes últimos dois anos) e a própria civilização humana vai jubilosamente avançando para o apocalipse climático apenas porque os tais interesses capitalistas que o promovem preferem a destruição global ao seu aconselhável e definitivo desiderato.
Na Ucrânia, como em todas as latitudes, é o capitalismo que figura como a verdadeira besta a abater!
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