É claro que a morte de Nelson Mandela suscitará o coro de elogios e de evocação de dados biográficos há muito preparados para o efeito. Desses estaremos bem servidos nos jornais, nas televisões e nas redes sociais nos dias que virão.
Eu prefiro recorrer à memória pessoal para recordar as muitas passagens pela África do Sul nos tempos do apartheid, quando ainda era um marinheiro que não perdera as graças do mar.
Na época os sinais da segregação eram mais que evidentes por exemplo quando ia jantar ao Hotel Edwards na Marine Parade e não vislumbrava um único negro a passear na avenida fronteira ao mar. Mesmo nas avenidas largas por onde andava, sentia-se bem a confiança dos brancos, que passeavam, em comparação com a humilhada pressa com que os negros iam transitando entre os seus empregos miseráveis e os bairros de lata dos subúrbios.
Não era fácil encontrar, igualmente, negros no topo da Table Mountain, junto à Cidade do Cabo, aonde só turistas brancos se deleitavam com a vista do oceano e esforçando-se por não procurar no horizonte a Robben Island, onde permanecia preso aquele que era tido como a maior ameaça ao regime dos boers.
Por essa época conheci também um fazendeiro de origem madeirense, que vinha trazer caixas de vistosos pêssegos a bordo em oferta aos oficiais do navio, que lhe retribuíam a atenção com convites para se lhes juntar às refeições na messe, o que constituía para ele a oportunidade de se multiplicar em elogios a si mesmo e à capacidade de ter vindo muito pobre do Funchal e ter construído ali uma fortuna. Um dia, numa dessas refeições causei um súbito silêncio quando o questionei sobre a possibilidade de a África do Sul abandonar aquele tipo de regime dominado pelos brancos. Lembro-me bem como, apesar de se conter pela condição de convidado, me fuzilou com o olhar e disse:
- Se houvesse alguma possibilidade disso mesmo acontecer, nós, os brancos, pegaríamos nas armas e mataríamos quantos pretos fossem necessários para que isso não ocorresse!
Mal sabia ele que, anos depois, se tornaria notícia nos telejornais e pelos piores motivos, já que seria um dos emigrantes portugueses assassinados numa das frutarias, que possuía ali no Cabo, quando Mandela já se tornara no primeiro Presidente negro daquele grande país!
Mas a pergunta feita a esse emigrante, também a repeti a outrem, de raça branca ou indiana, e a resposta era sempre a mesma. Uma África do Sul em que cada pessoa, independentemente da cor, contaria como um voto em eleições livres, seria algo de inimaginável. Pelo menos para quem julgava a História passível de se cristalizar num momento do tempo, que jamais dali evoluiria. Porque, fosse com Mandela na sua cela, fosse com muitos outros seus companheiros de luta, dentro ou fora da África do Sul, a hora da libertação acabaria por chegar.
E, quando isso ocorreu, o previsto banho de sangue, que uns prometiam lançar e outros temiam sofrer, não se verificou. Graças às palavras sensatas de um homem, que tivera paciência suficiente para sofrer os custos da sua luta e tomar as rédeas da revolução com a sapiência de quem conhecia os riscos de proceder de outra forma, que não aquela por que porfiou.
É claro que, a exemplo do sucedido com aquele emigrante madeirense, surgiram alguns danos colaterais. Mas convenhamos que bem poucos foram em comparação com o que se julgou poder tornar-se numa guerra civil transformada em carnificina.
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