Numa cidadezinha do Minnesota, Lily trabalha num restaurante, namora com o polícia Hank e prepara-se para desempenhar um dos papéis principais na peça «Sonhos de uma Noite de Verão». Mas, sobretudo, interessa-se por tudo e todos quantos a rodeiam. Principalmente por um pintor, Edward Shapiro, cujos gestos espreita a partir da janela do seu quarto. O que sabe dele é-lhe trazido por Ida, a coscuvilheira de serviço: era professor numa cidade próxima e a mulher deixara-o depois de ser conhecida a história das relações dele com uma estudante no seu gabinete ao som da música de Verdi de que era particular apreciador.
Seduzida pelo que ele personifica, Lily não hesita em informar Hank de estar tudo acabado entre ambos, depois de fazer um strip no seu quarto com a certeza de estar a ser vista da janela em frente. Mas ela chega a questionar-se que influência estará a ter o ter roubado , entretanto, um par de sapatos, que pertencera a Harriet Bodle, sobre quem existe uma lenda local: quisera deixar o marido e os filhos, mas vira frustrada essa vontade. Anos depois o seu cadáver teria sido encontrado, provavelmente assassinado pelo conjugue, entretanto também já falecido.
Que coisas estranhas se passarão nesse terreno de sucata, ainda hoje gerido pelos filhos do casal Bodle? Hank recomenda a Lily, que não se aventure por ali, a vizinha dos gémeos queixa-se de estranhas coisas, que vê sucederem da sua janela. E até o gaguejante Martin, que representará um pequeno papel na peça de Shakespeare a tenta avisar de algo, que ela não consegue compreender…
O mistério em torno dos Bodle vai crescendo ao mesmo tempo que a relação amorosa de Lily com Shapiro se consolida, passando ela as noites com ele. Quando vai devolver os sapatos ao espaço dos sucateiros, sem por eles ser vista, Lily não é bem sucedida, regressando dali com a cara acidentada pelos embates involuntários ocorridos com objetos que não conseguira ver. É lícito questionarmo-nos se não existe algo de sobrenatural em torno daqueles sapatos, como se a assassinada lhes tivesse transmitido um estranho poder.
Mas as situações singulares não se ficam por ali: do seu esconderijo, Lily conseguira ver Martin em convívio bastante amistoso com aqueles dois homens sebentos sobre quem a alertara.
As situações estranhas sucedem-se com escassas possibilidades de explicação: também na rua onde vive, há um homem que vem espreitar Lily todas as noites, como Mabel, a sua vizinha e amiga, e Shapiro, já terão constatado. E que terá até arriscado uma invasão do seu próprio quarto, embora ela o tenha encontrado depois como se ninguém ali tivesse entrado!
A meio do romance já estamos definitivamente instalados num clima à «Twin Peaks» em que se chegam a pôr diversas possibilidades: Lily ainda estará viva ou é um fantasma inconsciente de o ser? Os sapatos de Harriet Bodle estarão possuídos de um maléfico sortilégio, que afeta a rapariga? Quem são verdadeiramente Martin Petersen ou os irmãos Bodle para além da capa normal, que ostentam no dia-a-dia»? E quanto aos quadros ou desenhos criados por Ed Shapiro no seu quarto, serão algo mais do que meros trabalhos artísticos ou justificam as apreensões de Martin, que aconselhara Lily a não se deixar retratar?
Em dias sucessivos, enquanto Ed se dedica a retratar Mabel, Lily vai sucessivamente a casa de Martin e dos Bodle, não porque queira, mas por ser por eles levada. Na do primeiro vê estranhas e macabras imagens afixadas nas paredes e falando-lhe ele na semelhança física entre ela e uma rapariguinha morta ainda quando mal andava.
Quanto aos irmãos sucateiros, ela prepara-se para lhes confessar o roubo dos sapatos da progenitora assassinada, quando eles apenas lhe querem referir terem visto Martin a encaminhar-se para a floresta a carregar aos ombros o corpo desfalecido de uma rapariga parecida com ela.
Uma cena que o jornal local também refere ter sido vista por um dos seus leitores, muito embora sem que se aludisse a qualquer identificação dos envolvidos.
Quando regressa ao quarto de Ed Shapiro no Hotel Stuart, Lily testemunha a breve visita da prostituta Dolores, que lhe vem pedir dinheiro e anunciar-lhe ter encontrado o fantasma de Jesse James, no que entende como um prenúncio da sua própria morte para breve. Antes de sair Dolores ainda tem tempo para avisar Lily quanto ao amante: para lá da sua aparente meiguice, esconde-se uma personalidade muito tortuosa.
Nesta altura não é só Lily a sentir-se desconcertada com acontecimentos, que não compreende: também os leitores assim se sentem…
O romance entra na sua reta final e o puzzle começa a ganhar alguns contornos mais percetíveis, dissociando-se definitivamente dos temas mais frequentes em Stephen King: regressando às residências de Martin e dos Bodle, Lily encontra Dolores com estes últimos e fica a saber dos laços de parentesco, mesmo que longínquo, que a todos parece unir: à exceção da prostituta, ela e os estranhos interlocutores têm a uni-los a mesma proveniência geográfica, norueguesa. Ademais o apelido de solteira de Harriet Bodle era Underdahl, o que tem estranha similitude com o de Lily, Dahl.
A história vai evoluindo com Siri Hustvedt a conseguir optar sucessivamente pelas vias pelas quais não imaginaríamos, condicionados que estamos pelos estereótipos de uma literatura mais ou menos light. E será Martin a ganhar particular relevância num final acelerado em que se comprova a sua obsessão doentia por Lily de quem criara uma réplica sob a forma de uma boneca quase idêntica.
A intrépida rapariga consegue fazer-se acompanhar de Mabel para algumas aventuras noturnas, que a levarão à gruta-santuário do rapaz. Desmascarado, ele encontrará maneira de se libertar definitivamente da sua obsessão, rebentando a cabeça em pleno restaurante depois dela lhe servir o derradeiro pequeno-almoço.
No final temos direito a um final aberto: definitivamente esclarecida quanto à possibilidade de estar grávida de Shapiro - e não está! - Lily parece decidida a ficar mais algum tempo na pequena cidade, concorrendo ao desempenho de Eliza Doolittle em «My Fair Lady».
Ela sabe que, mais tarde ou mais cedo, irá ao encontro de Nova Iorque, mas não parece ter pressa em lá chegar. Até porque toda aquela história ainda demorará a ser por ela assimilada…
Publicado em 1996 nos EUA, «Fantasias de uma Mulher» é o segundo romance da escritora. E abre caminho para uma ficção estimulante, que podendo ter algumas pontes com a de Paul Auster, com quem está casada! - não deixa de ser genuinamente original...
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