Nas recentes eleições autárquicas a abstenção (que poderá estar falseada pela falta de atualização dos cadernos eleitorais) e, sobretudo, os votos em branco, ganharam particular destaque e serviram à direita para minimizar a derrota significativa, que conheceu. Mas esse é, de facto, um dos efeitos desagradáveis da falta de empatia entre os cidadãos e os políticos, que os deveriam representar. E que os faz enclausurarem-se em círculos de natureza religiosa, étnica, sexual, geracional ou sectária, quando não mesmo (sobretudo noutros países europeus) em radicalismos de extrema-direita.
A ladainha dos que pugnam pelo fim das ideologias serve, fundamentalmente, os propósitos dos que defendem o liberalismo na sua versão mais selvagem. E se, quando milton friedman ou friedrich hayek formularam as respetivas teorias ainda era possível colocar à prova os “benefícios” das suas propostas de liberalização total da Economia e de redução ao mínimo da dimensão do Estado, hoje todas as promessas de enriquecimento para um a maioria de cidadãos convertidos em “empreendedores” e em “acionistas” do capitalismo popular, caíram por terra e só restam os constrangimentos sobre o trabalho, que os neoliberais querem levar até ao seu sonhado desenlace: transformar os trabalhadores em meras mercadorias, que se exploram em função das leis da oferta e da procura.
A queda do muro de Berlim e o 11 de setembro de 2001 vieram legitimar uma visão politicamente distorcida da realidade em que vamos sobrevivendo.
É importante compreender em definitivo que no primeiro caso, o que ruiu foi um conjunto de experiências sociais, políticas, económicas e culturais, lançadas em nome do marxismo, em países ainda distantes de reunirem, segundo Marx, as condições necessárias para terem aí sucesso revoluções comunistas. Voltar ao pensamento do filósofo alemão significa identificarmos esses mesmos requisitos, que temos de convir estarem bastante mais conformes com os seus enunciados do que na época da Revolução bolchevique ou da criação das diversas Repúblicas Populares no pós-Segunda Guerra Mundial.
O entusiasmo, que essas experiências começaram por suscitar correspondiam a aspirações sentidas globalmente e que ainda estão por satisfazer. Os conceitos de justiça, igualdade e fraternidade, que correspondem ao corolário lógico de toda a dinâmica humanista ao longo da História dos homens, ainda estão por cumprir-se.
Foi Eric Hobsbawn quem referiu que assimilar ao marxismo as supostas aplicações estalinistas, equivaleria a confundir o cristianismo com a Inquisição ou o islamismo com Bin Laden.
É verdade que a esquerda está, por ora, num estado calamitoso, que nos torna émulos do que Gloucester dizia no Prelúdio do «Ricardo III» de Shakespeare: eis-nos no Inverno do nosso descontentamento. Mas deveremos confiar no sol de York que o transformará num radioso verão em que sejam remetidas para as profundezas dos mares as nuvens, que ameaçavam a nossa casa.
Por todo o lado vão surgindo movimentos de contestação à ordem presente, por muito que se revelem contraditórios entre si. Será da acelerada dialética das suas ações que se abrirão as vias para um mundo bem melhor.
É que, numa semana em que estamos a celebrar a memória de Nelson Mandela, podemos ter presente o seu exemplo de nunca deixar de acreditar, mesmo quando tudo parece tender para os cenários mais soturnos, que a maré cheia da libertação, quando começa a encher, torna-se imparável...
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