«O Mito de Sísifo» foi considerado uma réplica teórica das obras de ficção escritas por Camus na mesma época: «O Estrangeiro», «Calígula» e «O Mal-Entendido». Seria mais rigoroso ler nele a vontade de aprofundar, em paralelo com a expressão romanesca ou dramatúrgica, a exploração intelectual dos mesmos problemas.
Camus vai recorrer à mitologia grega para trazer de volta o personagem epónimo do seu ensaio, tradicionalmente considerado como o paradigma do herói absurdo devido ao seu trabalho estéril e incessante: Sísifo fora condenado a empurrar uma rocha montanha acima, acabando ela por cair sempre antes de chegar ao cume.
Na última parte do ensaio Camus enuncia claramente o verdadeiro significado que pretende atribuir ao mito: ele traz-nos Sísifo no momento em que a rocha acabou de resvalar, aliviando-o momentaneamente do fardo e dando-lhe a oportunidade de se sentir acima do seu destino porque, conscientemente, compreende-o e despreza-o…
Sísifo sente-se, então, feliz: contempla a beleza do mundo e em sintonia com ela. Quanto ao destino, encara-o como um assunto humano, a ele circunscrito e como tal distante de qualquer divindade. A exemplo de Édipo considera que está tudo bem e sente-se feliz.
Eis, pois, que em vez de fundamentar uma moral desesperada e desesperante na consciência do absurdo, «O Mito de Sísifo» afirma que a felicidade e o absurdo são filhos da mesma terra.
A originalidade do ensaio não reside somente nessa mudança de perspetiva, mas também no facto de situar a descoberta do absurdo e a correspondente consciencialização, como ponto de partida para a reflexão, em vez de a entender como termo da demonstração.
A sensação de absurdo não é abstrata: nasce da experiência e em função das suas consequências práticas.
Logo à partida Camus afirma que o único verdadeiro problema filosófico é o do suicídio: considerar que a vida vale a pena ou não ser vivida, equivale a responder à questão fundamental da filosofia.
Quando se vê tomado dessa estranheza, que associa ao absurdo e consiste num desfasamento entre o que é e o que vive, quando os cenários ruem à sua volta, será que o homem é impelido a matar-se? A resposta só virá depois de um inventário de variações sobre essa avaliação do absurdo (don Juan, o ator, o conquistador), de atitudes possíveis do “homem absurdo” e da análise da “criação absurda” através da criação romanesca.
Mas ela já está contida na definição de absurdo: na confrontação entre a irracionalidade e a espessura do mundo através, por um lado, do desejo de unidade e de clareza em contraponto com o horror à sua condição mortal, e por outro não ganhando sentido senão na sua recusa. Inevitável assim a revolta!
“Revolta da carne” contra o seu inimigo: o tempo. Revolta do espírito com o seu desejo de conhecimento e de constatação dos seus limites.
Camus recusa o “salto” dos filósofos existenciais ou a crença da fenomenologia de Husserl considerando-as como formas de abdicação de pensamento ou de “suicídio filosófico”. Trata-se, pelo contrário, de viver mais com a consciência e a recusa da morte, sem ceder a qualquer ilusão, no instante e de acordo com as três consequências do absurdo: a revolta, a liberdade e a paixão. É o que fazem o sedutor (na sua vontade de amar e conquistar), o ator (enquanto mimo do que fenece) ou o conquistador (quando sabe transitória e inútil a sua ação).
É o que pode ocorrer com o romance baseado em imagens e aparências - não na razão. Se a obra de Dostoievski consagra o mundo absurdo, dissocia-se dele ao propor a crença na vida futura como resposta para as angustias humanas.
A criação verdadeiramente absurda, que se sabe “sem amanhã”, testemunha a luta determinada do homem contra a sua condição. Rejeitando o suicídio, o homem pode encontrar a sua dignidade e grandeza na confrontação apaixonada e lúcida entre si e o mundo.
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