sábado, 28 de dezembro de 2013

IDEIAS: os frutos são de todos e a terra de ninguém!

Através da definição da propriedade como direito natural, a Declaração de 1789 transforma a instituição social em trincheira de proteção da propriedade privada  e em fator determinante das desigualdades. Os que redigiram aquele texto consideraram, em essência, o sujeito como um proprietário de acordo com o que Hugo Grotius escrevera em 1625 no seu «Do Direito da Guerra e da Paz»:
Como as coisas se tornaram propriedades: tal não sucedeu por mero ato da vontade, porque os outros não podiam saber o que cada um pretendia fazer seu, e várias pessoas poderiam querer apropriar-se do mesmo objeto. Mas foi resultado de uma convenção, expressa por meio, por exemplo, de uma partilha, ou tácita por via da sua ocupação. Devemos, pois, presumir que a comunidade conseguiu aceitar a regra de cada um ser proprietário do que ocupasse ou do que se apossasse.
Se a propriedade individual é um fenómeno natural, quando falamos de contrato social estamos a cuidar do usufruto dessa propriedade.
O Direito, por via das leis e dos contratos, regulará os conflitos relacionados com a posse e a transmissão dos bens, assegurando a proteção dos proprietários.
Temos de convir que, aqui, a noção de «propriedade» tem de ser considerada no sentido lato. O sujeito é definido como proprietário da sua liberdade, vida ou habitação: para Grotius, o ser e o ter acabam por se confundir entre si. As qualidades são outras tantas propriedades quanto o são os bens. Daí que não seja abusivo pretender que a Declaração de 1789 participa, através do Direito, nessa sacralização do ter.
Ora, numa sociedade que reconhece ter explicitamente por objetivo o de permitir aos seres contemplarem-se conjuntamente com as suas riquezas, o que sucederá aos de tudo desapossados?
O debate ganha intensidade ao longo do século XVIII, quando se discute o luxo. Helvetius vai defender que ele poderá ser um fator perigoso de desigualdade, porque torna esta ainda mais evidente. Em «Do Espírito»  (1758), ele constata que o luxo não é danoso enquanto luxo, mas simplesmente por efeito de uma grande desproporção entre as riquezas dos cidadãos.
Voltaire, pelo contrário, irá defender o luxo enquanto motor do progresso social, por constituir uma espécie de vanguarda: um determinado objeto inicialmente acessível a uma minoria, acabará por o vir a ser a quase todos, permitindo a melhoria coletiva do conforto da sua existência.
Pelo contrário Rousseau defenderá, no seu «Discurso Sobre as Ciências e as Artes», que o luxo é um inútil gerador de desigualdades.
Para o autor do «Contrato Social» encorajar o luxo  implica apostar na frivolidade e na legitimidade do lucro individual e das suas marcas distintivas. Porque o luxo não é apenas um privilégio de poucos: é também a representação, a manifestação mais ostensiva da riqueza neles concentrada. É por isso, que na tradição de Catão, Rousseau reclame a implementação de «leis sumptuárias», que coartem os sinais exteriores de riqueza e de acumulação de bens.
No seu «Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens», ele faz coincidir a criação da sociedade civil com o ato de apropriação:
O primeiro que colocou uma cerca num terreno tratou de dizer “isto é meu”, encontrou gente suficientemente ingénua para acreditar ter sido ele o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e quanto horror não teriam sido poupados à humanidade, se tivesse surgido alguém que arrancasse as estacas e tapasse o fosso, gritando para os seus concidadãos: «Cuidem-se de ouvirem este impostor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra de ninguém!»


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