No último quartel do século XIX, os músicos de Nova Orleães começaram a ouvir blues à medida que um fluxo constante de refugiados do delta do Mississípi começou a desembarcar na cidade ao pretenderem escapulir-se do sistema de semiescravatura conhecido como “Jim Crow”. Para essas pessoas o trabalho como estivadores no porto da cidade prometia uma vida melhor do que a até então conhecida nos latifúndios de cana-de-açúcar e de algodão.
Com as bagagens, que traziam, também chegava o blues como expressão de uma situação que desafiava a sua capacidade de compreensão.
Desde que a Guerra Civil terminara os negros andavam à procura de um novo padrão artístico, capaz de os libertar do estilo adotado e já muito desvirtuado pelos menestréis.
O blues foi o estilo musical, que emergiu dessa procura. Versátil e elástico não deixava de revelar simplicidade, o que fez dele a incontornável expressão musical americana.
Normalmente baseia-se em três acordes sujeitos a um arranjo em sequências conhecidas como estribilhos e que permitem um número infindável de variações. Trata-se de um estilo, que para ser bem tocado, não necessita apenas de boa técnica: tão importante quanto ela, há que ter uma sensibilidade muito especial. O músico pode criar, então, um estilo básico a partir do qual extrai todo o tipo de som. O blues era a versão profana dos hinos dos negros da Igreja Batista, com muitas chamadas e respostas, gritos, lamentos, exortações e improvisações.
Há uma grande diferença entre ter o espírito do blues e tocar o blues. Tocá-lo é uma forma de aliviar o coração. Talvez as letras fossem tristes, mas a melodia evocava tempos de alegria. Por isso essa música afastava a tristeza do coração.
Em Nova Orleães os músicos descobriram uma forma de aprofundar a mensagem do blues quando passaram a recorrer aos seus trompetes. Anteriormente os músicos tocavam cornetas e outros instrumentos militares, que tinham sobrevivido à Guerra Civil. Então, em vez de respeitarem os cânones do estilo militar passaram a imitar as melodias entoadas nas igrejas com notas, que vibravam no final. É assim que a música adota uma outra dimensão, ganhando em profundidade e em sinergia dos opostos.
As pessoas começaram a apreciar os hinos religiosos a par da melodia profana dos blues. E os músicos que conseguiam entender essas duas possibilidades e passaram a tocá-las lado a lado com as suas cornetas, como anjos e demónios ao mesmo tempo, eram admirados como os melhores.
No século XX o blues tornar-se-ia na fonte que alimentaria todas as correntes da música americana, incluindo o jazz.
Buddy Bolden foi um dos primeiros músicos de jazz. Talentoso trompetista, era um negro batista de pele muito escura, que imprimia forte personalidade à música que compunha. Nascido em 1877, só se lhe conhece uma fotografia e pouco se sabe da sua biografia. Mas, logo desde o início do seu percurso artístico, mostrava-se diferente de todos os outros corneteiros e trompetistas. Era mais eloquente, ousado e inovador, e estava sempre ansioso por encantar e surpreender os espectadores com a riqueza dos seus próprios temas.
Foi ele o inventor da batida conhecida como “big four”, ou pelo menos é o que reza a lenda. Essa inovação assentava no realce da quarta batida, quando o tambor e os pratos entravam juntos e foi assim que se começou a emancipar a cadência jazzística com todo o seu potencial de improvisações.
Em 1906, Buddy Bolden já se tinha tornado no músico negro mais conhecido em Nova Orleães e era aclamado como o mais talentoso de entre todos pelas crianças que se amontoavam à porta de sua casa todas as manhãs só para ouvi-lo ensaiar.
Ele era particularmente admirado pela comunidade negra de Storyville, um dos bairros mais pobres da cidade onde se testemunhava uma permissividade como não existia em nenhum outro lugar na América. Um verdadeiro pólo de uma sexualidade exuberante sem travões puritanos.
O jazz torna-se na música do real abordando as depravações testemunhadas pelos próprios músicos. Era isso que dava sumo à música e o que os seus apreciadores exigiam.
O auge do percurso de Bolden coincidiu com os anos dourados de Storyville, quando toda a cidade convergia para ali a ver o que ali se passava. Passara a ser o bairro mais famoso da cidade.
Mas Bolden começou a pagar o preço dessa vida boémia: começou a beber demais e a faltar aos espetáculos., queixando-se de insuportáveis enxaquecas. Quando começou a falar sozinho e a arranjar zaragatas com os músicos das bandas com que tocava - temendo ver nas inovações deles a capacidade para ofuscar as suas - já pouco era possível fazer para o livrar do fim anunciado. A mãe bem lhe tentou aplacar os medos, mas sem resultado. No auge de uma nova crise foi ela quem chamou a polícia., temendo pela sua vida ou pela do filho.
Buddy Bolden, o homem que liderara a primeira banda de jazz da História , não voltaria a tocar em público, passando o resto da vida internado no manicómio de Jackson, no Louisiana.
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