terça-feira, 10 de dezembro de 2013

LITERATURA: no centenário de Camus (6) - «O Estrangeiro»

É uma das obras-primas do século XX e uma das mais perturbadoras pelo carácter insólito do seu protagonista, pela singularidade da escrita e pelo segredo que encerra em si.
Meursault é o narrador da sua própria história, que comporta duas partes, sensivelmente distintas no tom e no conteúdo. Na primeira, Meursault descreve com o maior dos desprendimentos a sua vida quotidiana em Argel, desde que anuncia a morte da mãe até ao momento em que comete um crime.
Em tom de constatação, em frases justapostas, recorrendo quase sempre ao passado composto, Meursault regista as carências do seu corpo, a fadiga, o desejo de fumar, a dificuldade em suportar o calor. A par dessas sensações também testemunha o tédio e a indiferença.
Ainda que descreva minuciosamente a chegada ao asilo onde a mãe acabara de morrer, o velório ou o enterro, ele nunca demonstra o desgosto que seria suposto sentir. Assim como esse estado de alma se mantém no dia seguinte, quando se encontra na praia com Marie, no início do namoro com ela, no seu domingo, na vida monótona de manda de alpaca e no contacto com os vizinhos. E será precisamente por causa de um destes últimos, Raymond Sintès, que tudo se precipitará: Meursault aceita ajudá-lo numa discussão com a amante árabe e com o irmão dela. A zaragata ocorre no domingo nas areias da praia. Após uma primeira disputa em que não participa, Meursault evita uma segunda, e pega no revólver de Raymond dirigindo-se para uma fonte onde espera encontrar alguma frescura. Mas um dos árabes também para ali se dirige e, encadeado pelo calor e pelo sol, Meursault julga vê-lo empunhar uma faca e dispara. Nesse mesmo momento sente destruir-se o equilíbrio do mundo natural. E volta a disparar no corpo já inerte: e foi através de quatro breves tiros que bati á porta da infelicidade.
Este crime, que Meursault atribui ao acaso e ao sol, projeta-o para um autêntico apocalipse em que também participam o mar e o céu.
Desponta a partir daí um surpreendente lirismo: na segunda parte do romance a narração abandona o tom neutro do início. Aprisionado, Meursault aprende a gerir o tempo e as recordações: deixou de ser aquele que vivia no presente e nas decorrentes sensações.
Fiel à sua preocupação com a verdade recusa-se a assumir uma máscara de arrependido ou a dar respostas politicamente corretas.
O processo judicial, a que assiste como qualquer espectador, é uma caricatura da justiça e daqueles que a exercem. Os acontecimentos mais triviais do seu passado fundamentam a acusação, vendo-se apontado como alguém que terá enterrado a mãe como se fosse um criminoso.
Condenado à pena capital Meursault terá uma inflexão drástica no derradeiro capítulo, exprimindo uma inesperada paixão pela vida. Face ao confessor grita a sua cólera e revolta-se contra essa morte prematura, que contraria a condição humana e toda a expectativa de um futuro.
Disposto a tudo para viver, esvaziado de esperança, abre-se pela primeira vez para a indiferença dos outros e, em pleno absurdo, sente uma felicidade paradoxal: senti que tinha sido feliz e ainda o era.
A força e o duradouro sucesso do romance  têm a ver com algumas frases muito glosadas: Aujourd’hui maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.
«O Estrangeiro» impõe um universo e a presença física do seu personagem narrador com um convincente realismo. O romance dá uma forma romanesca, e admiravelmente demonstrativa; à reflexão filosófica por ele enunciada em «O Mito de Sísifo», que foi redigido ao mesmo tempo. O absurdo é representado pela sucessão dos dias banais e, depois, pelos acasos, que transformam Meursault num assassino e pelo carácter absurdo da sociedade, do seu funcionamento do aparelho judicial e da pena de morte.
Fundamentalmente inocente, estrangeiro para esse mundo e para si mesmo, Meursault é um homem absurdo; não tem outra certeza que não a da vida terrestre; outra felicidade senão a de viver e só encontra grandeza na sua autenticidade e revolta...



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