(a propósito do filme de Rithy Panh: «A Imagem que Falta»)
Acontece de vez em quando ao longo da História dos povos: decididos a comprovarem a justeza das ideologias, que abraçam, alguns lunáticos decidem testar formas extremas das ideologias de que se sentem genuínos cultores.
Infelizmente para nós, estamos no centro do furacão desencadeado por uma dessas vagas alucinadas: algumas mentes brilhantes consideraram imprescindível a austeridade sobre os povos do sul da Europa e, mau grado os péssimos indicadores decorrentes de tal estratégia, estão apostados em levá-la até às últimas consequências. Mesmo que o resultado desta versão neoliberal do capitalismo seja uma terra queimada e estéril, as Merkel, os barrosos e os passos coelhos não se intimidam com os danos que causam.
O caso do Camboja de Pol Pot e dos seus khmers vermelhos é muito semelhante, ainda que sedeado na ideologia contrária. Já não lhes bastava olhar para os fracassos da aplicação do modelo leninista na União Soviética ou na China, que a fuga em frente lhes pareceu a solução mais avisada. Daí a opção pelo esvaziamento das cidades, pela condenação de todo o povo à condição de agricultores sem ferramentas básicas para cuidar da terra e a resolução expedita do descontentamento dos recalcitrantes à força de fuzilamentos e da tortura.
Quando gente mais lúcida tratou de pôr fim à experiência, o Camboja era um imenso cemitério a céu aberto em que as caveiras se empilhavam nas salas das antigas escolas.
Rithy Panh era uma criança, quando os khmers vermelhos chegaram a Phnom Penh. Filho de professores, ele ainda viveu suficientemente antes da tragedia se abater sobre a sua família para se recordar das festas, dos risos, do cheiro a caramelo ou das danças de antigamente.
Agora, passados quase quarenta anos, ao lançar-se para o projeto de filmar esse pesadelo, encontra uma dificuldade de tomo: faltam-lhe imagens para ilustrar o livre curso da memória. Daí uma solução particularmente engenhosa: através de estatuetas de madeira, ele consegue recriar os episódios desses quatro anos passados em sucessivos campos de trabalho.
Conhecemos bem esse regime que assentou no projeto de uma sociedade em que o coletivo se sobreporia totalmente sobre os interesses individuais. Mas ouvi-lo contado na primeira pessoa do singular tem outro efeito. Tanto mais que Rithy Panh conta exemplos concretos, que se sobrepõem à generalização da História: o miúdo de nove anos que denuncia a mãe como contrarrevolucionária e a faz fuzilar; o professor, que recusa a parca comida, que lhes é servida no campo de trabalho e se entrega assim a um destino certo; ou a provação agravada por inundações, que obrigaram os prisioneiros a acolherem-se nas árvores para não morrerem afogados.
Já para o final do filme, o realizador interroga-se sobre as razões para terem sido tão escassos e prontamente aniquilados os casos de revolta contra aquele estado das coisas. Seria pela influência da religião budista, que fazia tudo aceitar em nome do karma para que se estaria destinado? Ou existiria gente explorada e humilhada em número suficiente no antigo regime, para terem força suficiente, que justificasse toda aquela inflexão no relacionamento entre os antigos ricos e os antigos pobres?
O epílogo do filme é inquietante: o Camboja de hoje voltou a ter gente muito endinheirada ao lado de gente miserável, que mal consegue arranjar dinheiro para enganar a fome.
O que significa a possibilidade de ver o país novamente sujeito a novas experiências económicas e sociais, seja de um ou outro lado do extremismo político.
Quando a desigualdade social é muita a Democracia estará sempre em risco.
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