Na década de 50, quinze anos passados sobre a sua criação de Philip Marlowe, o escritor Raymond Chandler fez figurar em carta a um tal D.J. Ibberson, algumas informações sobre o detetive, que nunca inserira em qualquer dos romances que o tinham por protagonista. Ficava-se, assim, a saber que Marlowe nascera em Santa Rosa, no norte da Califórnia, passara uns anos a estudar numa universidade do Oregon, aonde fraturara o nariz a jogar futebol (o americano, claro!).
Mas as revelações não se ficavam por aí: Marlowe teria trabalhado como detetive para uma companhia de seguros e, depois, para o procurador de Los Angeles por quem fora despedido por se revelar demasiado eficiente.
Quando o conhecemos como detetive particular por conta própria, Marlowe terá cerca de 38 anos, idade com que ficará em todos os romances, muito embora eles se vão sucedendo ao longo dos anos de vida do seu autor.
Chandler nascera em Chicago em 1888, mas acompanhara a mãe, acabada de divorciar, na mudança para Inglaterra. Daí que, desde os sete anos até ao final da adolescência, viva e estude num ambiente bastante diferente do conhecido nos seus mais verdes anos.
Convencido da possibilidade de enriquecer no país natal, Chandler volta para os Estados Unidos e vai instalar-se em Los Angeles, que o conquista com essa urbe rodeada de pequenas cidades rurais, estações balneárias e de uma longa faixa de paisagens selvagens entre as montanhas e o oceano. Mas, mal tem tempo para se instalar e trabalhar em ofícios miseravelmente remunerados, que já a I Guerra se torna realidade e ele aventura-se nas trincheiras europeias integrado no corpo expedicionário canadiano.
Quando se vê desmobilizado, Chandler regressa à cidade dos Anjos e encontra emprego numa empresa petrolífera como diretor operacional. Durante dez anos passará os dias a negociar com uma fauna humana muito diversificada em que os arrivistas e os corruptos são particularmente numerosos. Será do convívio com proprietários de terras, agentes de autoridade e pobres diabos, que ele começará a criar a ambiência complexa das suas histórias em que o desencanto com tudo e com todos caracterizará o seu alter ego.
A escrita ficcional surge tarde na biografia de Chandler: só vinte anos depois dele chegar à Califórnia pela primeira vez é que uma novela sua, «Blackmailers Don’t Shoot», aparece nas páginas da revista «Black Mask», ou seja, em 1933.
Nesse mesmo período, a corrida ao «ouro negro» e aos estúdios cinematográficos, aumentara a população local de 300 mil habitantes para quatro vezes mais.
Chandler verá esse crescimento de uma forma muito negativa, como se tivesse conhecido o paraíso e ele se tivesse evaporado por efeito de toda aquela agitação. Mas, ainda assim, ele não deixa de calcorrear cada recanto da metrópole, conhecendo-a para a descrever como ninguém nessa súbita metamorfose que perpassa pelos sete romances protagonizados por Marlowe.
De permeio tem uma passagem desastrosa, mesmo que financeiramente proveitosa, por Hollywood, onde se incompatibiliza violentamente com Billy Wilder e com Alfred Hitchcock. A sua forte personalidade não se coaduna com a condição do argumentista dos grandes estúdios, em que lhe caberia ser um mero peão de produções com o produtor como dono de todas as decisões.
Estilista por natureza, e meticuloso na escolha das palavras e do acabamento dos seus romances, ele é capaz de sínteses perfeitas como a que faz a respeito da Califórnia, que diz conter the most of everything and the best of nothing.
Agora que nova tradução está a ser preparada para publicação em França - depurada dos “floreados” tão do agrado dos que se encarregavam desse mesmo trabalho nos anos 50 - surge a oportunidade para constatar que a escrita de Chandler não se cinge à subalternidade comummente associada à sua mera caracterização como romancista policial. Trata-se de um autor com A grande, que continua por reavaliar à luz do distanciamento suscitado pela passagem de mais de meio século sobre a sua morte.
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