Numa crónica publicada há mais de uma dúzia de anos, Eduardo Prado Coelho extraía uma anedota saborosa de um livro de Joaquin Estefanía, então publicado, e onde dois antigos membros do Partido Comunista da União Soviética se encontravam para a troca de palavras desconsoladas.
Dizia o primeiro: “Sabias que tudo o que ‘eles’ nos diziam sobre o comunismo era mentira?” E o segundo responde: “Claro, claro que sabia, mas o pior não é isso: o pior é que tudo o que ‘eles’ nos diziam sobre o capitalismo era verdade.”
Se a estória fazia todo o sentido nessa altura, quando a Rússia já era comandada por uma oligarquia dominada pelos antigos quadros do KGB e do PCUS subitamente reciclados em capitalistas de Estado, ela ainda ganha maior significado nesta fase da História humana.
Na época áurea da Guerra Fria, o Ocidente espalhava histórias de comedores de criancinhas e de injeções atrás da orelha nos velhos, enquanto os estalinistas não poupavam os seus inimigos contando exemplos de desigualdades e de miséria como fruto da aplicação de um capitalismo exclusivamente a soldo dos patrões.
Os trabalhadores do lado de lá do muro de Berlim podiam aceder a bens essenciais a preços módicos nas lojas geridas pelo Estado e frequentavam mais facilmente os seus Bolshois do que os seus émulos sujeitos à exploração do patronato ganancioso. E era esse o mito difundido efetivamente pelos poderosos partidos comunistas que, na clandestinidade ou na legalidade, sonhavam com uma Europa internacionalista sob a bandeira da foice e do martelo entre o Atlântico e os Urais.
Pelo medo em que isso ocorresse, os patrões ocidentais e os governos por si manipulados, criaram uma legislação laboral tépida em que alguns direitos essenciais pareciam definitivamente conquistados. Graças às sociais-democracias nórdicas e às democracias-cristãs do sul da Europa até se presumia irreversível a implementação de um Estado Social, que adormecia quem dele usufruía à sombra de direitos, que já não careciam ser conquistados nem preservados.
A estratégia capitalista revelou-se tremendamente eficaz, até porque a gestão a leste revelava-se incompatível com o crescimento económico e com a criação de condições de acesso a bens de consumo excitantemente supérfluos, como eram o caso de automóveis de linhas estéticas e de desempenho impressionantes ou os eletrodomésticos capazes de transformarem em utopia o quotidiano das mulheres ocidentais.
A implosão de 1989 era um evento anunciado por muito que, tolhidos pelas aparências de então, a julgássemos improvável.
Mas, passadas duas dúzias de anos, e já sem a ameaça de uma utopia, que todos os media se encarregaram de desqualificar, os capitalistas ocidentais estão a acelerar o seu programa de esvaziamento do que constituíra a cortina de fumo com que tinham enganado os proletários das antigas “repúblicas socialistas” e tolhido as vontades dos que viviam do lado de cá. Uma cortina eficiente, mas dispendiosa e impeditiva de se locupletarem com uma parcela maior das mais-valias produzidas.
Servindo-se das bolsas, das agências de rating, das instituições internacionais (FMI, Banco Europeu de Investimento, Comissão Europeia, etc.) e dos governos designados pelos donos das grandes empresas e dos meios de comunicação, esses interesses, que se comportam habitualmente como eminências pardas dos que aparentam deter o poder político, estão a promover o que de pior tinha o capitalismo na visão estalinista dos anos 30: a tentativa de criação de um abismo de direitos entre um núcleo muito limitado de detentores do capital e uma vasta maioria de cidadãos empobrecidos, incultos e resignados.
É tenebroso este capitalismo despojado das suas máscaras de humanismo, de concertação social e de preocupações com a justiça. Exatamente o contrário do que a Revolução Francesa propunha com a sua Declaração dos Direitos do Homem. Nem Liberdade, nem Igualdade, nem Fraternidade.
Mas terão os senhores do dinheiro a ilusão de terem a seu favor os ventos da História? Provavelmente até apostam que sim. Por isso semeiam ventos, que lhes poderão valer, mais tarde ou mais cedo, inesperadas tempestades...
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