Em textos anteriores vimos como a Democracia da Antiga Grécia tendia a afastar o homem do seu estado natural, quando ainda vigorava a violência dos mais fortes contra os mais fracos. A igualdade de direitos e de deveres garantia um equilíbrio, que mesmo excluindo metecos, mulheres e escravos, era suficientemente forte para uma verdadeira paz social. Até que emergiram os Sofistas, que suscitam uma verdadeira contra-evolução.
Pela sua presença na Cidade, o Sofista restabelece a desigualdade entre os cidadãos e o direito do mais forte a fazer-se ouvir mais facilmente.
Os cursos de retórica tornam-se obrigatórios para quantos pretendam candidatar-se a um mandato na Agora, e só as famílias mais abonadas podem oferecer aos filhos o acesso à sabedoria de um Gorgias ou de um Protágoras. A lei do mais rico torna-se a da democracia. O que equivale a restabelecer na sociedade uma espécie de selva onde a riqueza impõe o seu estatuto de força.
Em vez de ficarem escandalizados com essa evolução, os Sofistas vão configurar-lhe uma filosofia capaz de apoiar o turbulento Calicles, que desafiara Sócrates segundo uma argumentação, que Nietzsche irá reduzir a esta fórmula: “é preciso proteger os fortes contra os fracos!”.
Contra as leis da Cidade que tendem a igualizar os cidadãos e protegê-los da violência dos fortes, Calicles propõe o estabelecimento da desigualdade. Para o que os Sofistas tanto contribuíram ao darem aos ricos os argumentos para se apossarem do domínio da Cidade.
Eles conseguem que a sociedade regresse ao seu estado natural, com a Besta reinstalada onde não se imaginaria.
No século XVI um outro “professor” ensina a Lourenço de Médicis, mas também a todos os Republicanos (segundo Rousseau, “ao fingir dar lições aos reis, ele propiciou-as aos povos”), que a besta instalou-se à cabeça da Cidade.
Em « O Príncipe» Maquiavel explica que o verdadeiro príncipe caracteriza-se pela sua bestialidade, particularmente através da astúcia, precisamente o indício da sua animalidade. No capítulo intitulado “Como os Príncipes devem manter as suas promessas”, ele desenvolve a seguinte ideia: saiba que existem pois duas maneiras de combater: uma pelas leis e a outra pela força. Uma é típica dos homens, a outra pertence aos animais; mas como, muitas vezes, a primeira não basta, será necessário recorrer à segunda. Eis porque importa que um Príncipe seja, ora homem, ora animal. Esta distinção foi ensinada aos Príncipes em termos figurados por antigos escritores: a educação de Aquiles e de outros grandes senhores foi, outrora, confiada ao Centauro Chiron para que ele os disciplinasse.
O Centauro é uma criatura meio-homem, meio-animal. Ensinará ao Príncipe a utilidade a retirar dos seus instintos naturais, especialmente da astúcia. De facto, o que faz do Príncipe um ser excecional é a faculdade para mobilizar instintivamente todos os recursos para escapar a uma dificuldade.
Acossado pelos acidentes da História, o Príncipe deve mostrar “bons reflexos”, que potenciarão os acasos em ocasiões de conquista do poder. É a astúcia, que permite ao verdadeiro Príncipe manter-se na liderança do Estado, quando à sua volta impera o caos e a ambição.
A capacidade para virar a seu favor todas as circunstâncias é aquilo a que Maquiavel chama a virtù. É ela que distingue o Príncipe dos seus súbditos.
A palavra deve ser utilizada em italiano, porque a nossa virtude não corresponde verdadeiramente ao sentido em causa.
Não existe nada de moral na origem dessa ideia de valor distintivo, de mérito essencial. Qualidade, bravura, valentia, força de alma compõem as características do Príncipe.
O termo valoriza o coração e a coragem sobre a razão. É pois a virtù que revela a natureza animal do verdadeiro homem político, ao mesmo tempo “leão para atemorizar os lobos” e raposa “para reconhecer as armadilhas”.
A astúcia revela o verdadeiro Animal político que faz da sua duplicidade um princípio de distinção e a ferramenta da sua superioridade.
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