Chris Marker avisa-nos desde o início que não veremos neste filme a vida de Simone, porque ela contou-a melhor do que ninguém na sua autobiografia: «A Nostalgia já não é o que era». Não é a sua carreira, já que excelentes emissões televisivas trataram disso. O que vemos é uma sucessão de pequenos pedaços de memória em bruto, uma viagem através das imagens, que ela guardava.
Amigo e testemunha privilegiado da vida de Simone Sigmoret, já que os caminhos de ambos nunca deixaram de se cruzar desde quando foram colegas no Liceu Pasteur em Neuilly-sur-Seine, Chris Marker realizará, a pedido de Gilles Jacob para o 39º Festival de Cannes, a mais bela homenagem àquela que dizia ter a nostalgia pela memória partilhada.
Concretizado a contrarrelógio e sem ligar ao quadro jurídico, «Memórias Para Simone» ficou nas prateleiras durante trinta anos.
Antecipando-se à retrospetiva, que o Centro Pompidou está hoje a inaugurar sobre a obra de Chris Marker, o canal franco-alemão ARTE possibilitou-nos a descoberta de três dos filmes do grande cineasta e ensaísta militante, que morreu no ano passado. E entre eles estas «Memórias para Simone» em que assina uma homenagem comovente à sua amiga Simone Signoret através de extratos de filmes, de emissões de televisão, de entrevistas e de passagens da autobiografia dela lidos por François Périer.
Podemos adivinhar a excitação de Chris Marker, quando Yves Montand lhe abriu o acesso aos arquivos familiares. Para o cineasta, conhecido mestre da arte da montagem, a abertura de um armário recheado de bobinas inéditas, cassetes esquecidas e filmes em super 8 representa mais do que a descoberta de um tesouro cinematográfico: a promessa de uma infinidade de perspetivas possíveis para ilustrar o seu testemunho sobre Simone Signoret.
A identificação desse material ocorreu em 1986, alguns meses depois da morte da atriz. Confiando a Chris Marker a tarefa de realizar o seu retrato biográfico, Yves Montand e a enteada Catherine Allégret tinham a garantia da sua amizade, mas também da mestria do documentarista, que chegara a rodar uma curta-metragem com Simone em 1969.
Confortado pela confiança dos amigos e de Gilles Jacob, o realizador de «La Jetée» vai repetir a liberdade formal, que lhe garantiram um lugar à parte no cinema mundial.
Pouco preocupado em responder às convenções da biografia clássica, Marker vai evidenciar a sua visão de autor sobre a atriz e sobre a textura das imagens recorrendo a extratos de filmes mais ou menos conhecidos («Les sorcières de Salem», «Les Chemins de la Haute Ville») onde brilha a beleza selvagem daquela que, ao longo da sua carreira, ganhou um Óscar, um César e um Emmy Award.
Mas também se dá ao prazer não dissimulado das imagens periféricas: sequências de uma emissão feminista, fotografias retocadas pelos biógrafos russos, grandes planos para as mensagens recebidas no minitel do “Libération” no dia do desaparecimento da sua amiga, etc.
Marker planta esses “pedacinhos de memória em bruto” nas palavras da atriz (no que escreveu ou nas entrevistas) e pinta uma tela tão complexa quanto o era a personalidade de Simone Signoret.
Um canto livre mas sem lirismo excessivo, uma balada intuitiva na qual a atriz resplandece com lucidez, profundamente atraente. Ironia do acaso para aquela que esperava tornar-se um dia uma memória partilhada por todos, sonho igualitário de um saber comum que teria conduzido a um mundo mais justo: por questões de direitos o filme ficou invisível até agora.
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